Agora que passou o Dia dos Namorados – uma das datas comercialmente mais rentáveis do ano, se não a mais rentável – procurei perceber o motivo de tanto foco no mercado de gente solteira. Não é que que os casados e unidos de facto, os divorciados e os viúvos não possam legitimamente celebrar o dia como bem lhes apetecer. Porém, namoro é um termo que se cola a quem tem potencial para passar ao estatuto social seguinte mas ainda está no nível um: os “sem compromisso” (não têm par ou têm vários) e os “quase comprometidos” (têm uma ligação sem estatuto definido, onde cabem também os namoros assumidos, e o tempo dirá se a dança acaba, se fica nesse nível ou se avança para o seguinte).
Em qualquer dos casos, permanecer no registo ‘single’ é algo que ainda parece ser visto como algo perturbador na cultura dominante. O “solteirão incorrigível” é invejado pelos que não estão na pele dele; a que “ficou para tia” desperta medos; e a outra, ou outro, que “não se percebe que vida tem”, desperta fantasias e desabafos como “e faz ela/ele bem”. Ser solteiro – viver a solo, andar à solta – é classificável como uma condição (temporária ou nem por isso) ou uma escolha? E, sendo uma escolha, já tem aceitação social (e pessoal) plena?
Livres, sim, mas… querem mesmo isso?
O Dia dos Solteiros celebra-se em vários países, em datas diferentes. Surgiu na China, na década de 90, como manifesto anti Dia de São Valentim e uma forma de celebrar o orgulho em ser livre (de compromissos), sobretudo entre jovens adultos. É nesse dia do ano do ano – 11.11 (ou duplo 11) – que mais compras se fazem online (o gigante Alibaba foi pioneiro na iniciativa e as vendas já superaram as da popular Black Friday). Nos Estados Unidos este nicho apetecível de mercado corresponde a 45% dos contribuintes e a estratégia comercial fixou-se numa data com os mesmos números primos, mas a 11.1. O Singles Awareness Day (acrónimo SAD, que também significa triste – simples coincidência?) celebra a liberdade sem estigma para, no mês seguinte, os “bafejados pela sorte” festejarem o Dia dos Namorados.
A “moda” chegou aos portugueses de forma mais discreta, na primeira década do milénio, pela mão de uma empresa de eventos e, aparentemente, celebra-se a 15 de agosto, havendo até uma comunidade no Facebook (Solteiros de Portugal), com mais de 3600 ‘likes’ (que subiram, curiosamente na semana anterior à do dia 14). Conclusão: festeja-se o culto da liberdade ou celebra-se para esquecer que se é um coração solitário, já que tristezas não pagam dívidas?
“A mesa é só para um?”
Em Portugal este grupo representa 40,4% da população (Censos), um pouco abaixo do dos casados (46,6%). Além disso, um em cada cinco lares é formado por uma pessoa “livre” (20,9%), segundo os dados do Eurostat, um pouco atrás dos agregados compostos por casais sem filhos (23,8%). O cenário é um pouco diferente do da média europeia, onde o grupo dos solteiros sem filhos (32,7%) está em maioria, com uma vantagem de 8% face aos agregados formados por casais sem prole (24,7%). Esta pequena diferença estatística pode ser parcialmente atribuída a fatores culturais (onde come um, comem dois, ninguém gosta de viver sozinho) e económicos (a liberdade tem um preço, também no plano imobiliário).
«Porque precisamos de ter outra pessoa que nos faça sentir inteiros?» Esta é a pedra de toque do movimento nascido nos Estados Unidos, há uma década, contra a forma como os solteiros são (des)considerados, ou seja, tratados como cidadãos de segunda, ou alvo de preconceito. A psicóloga e cientista social Bella DePaulo, da universidade da Califórnia, inventou um termo para isto: Singlism (singlismo ou solteirismo). E desde então tem vindo a dedicar-se ao tema em artigos e livros e a conquistar popularidade junto dos media.
‘Caras-metades’ versus ‘Solteirões’
Assim de repente, lembro-me da opção de estatuto social que consta na página do perfil da maior rede social: «É complicado.» E para quem é mais complicado? Como reagir ao clássico “És tão inteligente e tens tudo no sítio, porque é que ainda não ‘tens’ ninguém?”
A pressão para estar numa relação estável ainda mora, sobretudo no feminino, mas num jogo de forças cada vez mais renhido pela crescente legião de gente que vive no singular.
Tal cenário enquadra-se no que os psicólogos sociais designam por teoria da dissonância cognitiva, que defende que os seres humanos tendem a idealizar as suas escolhas para não terem de lidar com o desconforto de um eventual arrependimento. Uma pesquisa americana da universidade de Stanford (publicado na revista Psychological Science) mostrou que tanto os inquiridos que estavam numa relação como os que não estavam em nenhuma (e ambos tencionavam assim manter-se) entendiam que a “sua” opção era a melhor para todos, mostrando-se intolerantes face aos que não seguiam essa via. Ou seja: o singlismo (o preconceito) tocava a todos. Não por acaso, os que julgavam menos as escolhas de outros, diferentes das suas, eram aquele que não tinham certezas quanto ao seu estatuto atual.
Em que ficamos?
A palavra cabe à autora do livro Singled Out: How Singles Are Stereotyped, Stigmatized, and Ignored, and Still Live Happily Ever After (Escolhidos: Como os solteiros são discriminados, estigmatizados e ignorados e vivem felizes apesar disso). A ativista Bella DePaulo, que escreve para a Psychology Today e o Huffington Post, publicou uma mensagem recente no seu blogue
Que pode resumir-se desta forma:
– O problema não é haver um Dia dos Solteiros, mas sim perceber se se trata de festa, de descontos ou de tomada de consciência.
– O problema é que, apesar de serem cada vez mais na sociedade atual e de contribuírem fiscalmente tanto ou mais do que outros cidadãos, o seu estatuto ainda é sinónimo de “sozinho” ou “desapegado” (quase um coitado).
– Ainda não é assim tão óbvio, por exemplo, que se possa encontrar a alma gémea nas amizades.
À pergunta que tantas vezes se faz – se eles conseguem ser felizes assim – Bella DePaulo retribui, em tom de desafio: “E as pessoas casadas, conseguem?”