Quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021. A chuva miúda cai sem dar tréguas sobre as mais de duzentas pessoas que formam fila na cidade de Viseu. O povo diz que molha tolos e muitos transeuntes de algum modo parecem concordar. Não compreendem o que faz tanta gente, debaixo de chuva e com um céu tão negro que ameaça desabar, encarreirada até à porta da livraria Teixeira.
Isto não é verdade. Antes fosse. É uma pequena ficção, dessas que os livros transportam. E não é verdade desde logo porque as livrarias não estão abertas – nem em Viseu, nem em parte nenhuma do país – e porque, excetuando o caso bem conhecido da Lello, que é simultaneamente uma atração turística, as pessoas não se acotovelam nas livrarias, nem formam fila para entrar, como toda a gente sabe. E é por isto ser do mais elementar senso comum que espanta que tenhamos as livrarias fechadas.
No Reino Unido, por exemplo, as vendas de livros aumentaram durante a pandemia. Números da consultora que audita o mercado, bem como testemunhos dados pelos profissionais do setor ao The Guardian, confirmam-no: as vendas cresceram 5,2%, a maior subida desde 2007. Curiosamente, não há notícias de que os contágios tenham aumentado nas livrarias.
O livro é um bem essencial. Por esse motivo, saber que o governo mandou encerrar as livrarias (o setor não aguenta? «Ai aguenta, aguenta!», diria alguém), locais onde o único vírus que se propaga é o da leitura, é constatar o continuamente constatado (permitam-se-me a aliteração e a repetição, esses recursos expressivos de cariz literário) desde que tenho memória: os sucessivos governos não estão despertos, digamos assim, para o que os hábitos de leitura dos cidadãos podem fazer por uma sociedade, nem para a situação que estamos a viver a esse nível.
Representamos as últimas gerações que ainda leem – somos uma espécie em vias de extinção. As tecnologias sem as quais já não vivemos, seja através dos conteúdos em streaming ou das aplicações que nos injetam dopamina no sistema nervoso, não foram concebidas para lhes resistirmos. Pelo contrário. Por isso, urge agir (graficamente fica bem – urge agir – e parece húngaro, mas é português, essa língua que os nossos miúdos, de tanto navegarem na Internet, qualquer dia já nem dominam). As consequências no que respeita ao futuro das novas gerações já se anteveem.
Nos países ocidentais, porque as crianças de 2 anos passam em média 3 horas em frente a ecrãs, as que têm idades entre os 8 e os 12 anos perto de 5 horas e os jovens entre os 13 e os 18 quase 7 horas por dia, as gerações que estamos a educar – constituídas pelos chamados «nativos digitais» – vão ser as primeiras nas décadas recentes a ter valores de QI inferiores ao dos pais. Este dado chocante é veiculado por um livro (!) premiado em França, intitulado La Fabrique Du Crétin Digital, da autoria de um especialista em neurociências cognitivas chamado Michel Desmurget, e que, permitam-me a declaração de interesses num espaço no qual tenho sobretudo falado de autores publicados por outros editores, irei publicar ainda este ano. Caso as livrarias estejam abertas, claro está. Também um artigo do professor francês Christophe Clavé se tornou viral nas redes sociais há uns meses por alertar para o mesmo: o QI médio está a diminuir desde o começo do século. São valores médios e concernentes a países onde se lê muito, como a Noruega, a Dinamarca, a Finlândia, os Países Baixos e a França. Não abarcam Portugal. Temamos, portanto, o momento em que, um destes dias, tivermos de nos confrontar com a evidência estatística que a empiria já permite constatar.
Mergulhando as crianças nos ecrãs, condicionamos-lhes o desenvolvimento motor, social e intelectual. Lendo menos livros, elas adquirem menos vocabulário, menos capacidade de concentração, desenvolvem dificuldades de expressão das emoções e das ideias, dá-se nelas a simplificação do pensamento. Desmurget avisa de forma clara: tornar-se-ão crianças tristemente semelhantes às descritas por Aldous Huxley no seu famoso romance distópico Admirável Mundo Novo. Antes dos 18 anos, os nossos filhos terão passado o equivalente a 30 anos letivos em frente a ecrãs.
Face a este cenário, não é difícil perceber que, se nada fizermos, o livro tem os dias contados enquanto objeto de interesse para o grande público e que aquilo que ele tem a oferecer será aproveitado por muito poucos. A capacidade de concentração, a atenção a uma só coisa, está a desaparecer. As crianças, e muitos adultos, vivem em contexto de estímulo permanente, prestando a atenção possível a várias coisas, e dependentes da tal bombinha de dopamina que transportam no bolso para todo o lado e a que se vulgarizou chamar smartphone. Há dias, ouvi um outro autor meu, da área da psicologia, o professor Luís Fernandes, explicar numa entrevista que muitos adultos desenvolvem estados de ansiedade, até com resposta física, se não estiverem com o telemóvel. Como será com as crianças?
Ficará na história o governante que, através de uma política pública tão inesperada no quadro das que têm mudado o rumo das nações, tiver a lucidez e a visão necessárias para reescrever e dar a ler o nosso futuro através de medidas que façam da leitura um desígnio nacional. Não é nada senão isso aquilo que é preciso fazer.