Faz já três invernos que me correspondo com duas pessoas que moram sozinhas em lugares remotos. Se acreditasse no destino, diria que isso se proporcionou por sempre ter gostado de almas solitárias. Impressionam-me os maratonistas, os ciclistas, os velejadores, até os vigilantes noturnos, mas sobretudo os guardas-florestais e os pastores. Comovem-me se forem velhos. E velhos são os meus penfriends, coisa tão em voga como as cassetes e a alcatifa – umas e outras, curiosamente, muito do meu agrado. Um é faroleiro numa ilhota minúscula, pouco mais do que um barco parado, e dele falarei mais demoradamente em futura ocasião. A outra pessoa é uma escritora maior, mas ainda por revelar. De momento, adianto que são gente de diferente origem e condição. Um não gostou de andar na escola, a outra gostaria de nunca dela ter saído. Resume-se a isto o que hoje direi do faroleiro, e creio que é o bastante, mas com a minha amiga irei despender mais tinta, ainda que nunca tanta quanto a que, a cada três meses, me tem feito chegar, para que eu a publique depois da sua morte.
Há doze anos enviuvou e há doze promoveu a concubino o taberneiro e merceeiro, um homem pobre de espírito, mas rijo de braços e instintos. Interessei-me por ele, confessou-me certo dia, ao trazer-me a casa umas garrafas do vinho que não dispenso, que toda a vida sonhara ser soprador do vidro. Não soube o meu futuro amante dar-me conta dos motivos que o seduzem em tal mister, mas agradou-me sabê-lo interessado por uma arte geradora de harmoniosas formas, capaz de a partir de massa incandescente dar à luz cristalinos objetos. Nesse instante, terá pensado, e mais ou menos mo disse, que, se ele tão bem lhe abastecia a casa, disparatado seria não lhe conceder a oportunidade de lhe aprovisionar também a alma e os vazios corpóreos. Matérias de dimensão espiritual discute-as com Plêiade e Miríade, as gatas persas que disputam o xaile com que cobre o colo enquanto escreve (o Sr. Aurélio chama-lhes Pleia e Miriam). A minha amiga é pouco dada à discrição e gosta de me contar as suas arremetidas libidinosas com o brutamontes do Sr. Aurélio Merceeiro – ela própria assim se lhe refere – um pouco por todo o jardim que envolve o casarão, bem ao centro da propriedade de dezassete hectares, a maior das redondezas.
Quem de Monção se dirige para Melgaço, vê à esquerda o fronteiro rio Minho e, a dado momento, à direita, um monte encimado por um magnífico solar, de cujo torreão se conseguem avistar todas as terras alto-minhotas e galegas. Diz-se que, na sua construção, terão sido utilizadas pedras vindas – há quem diga roubadas – do Castelo de Castro Laboreiro, mas Sra. D. Maria Laudecena Soveral de Almeida Damesceno rejeita tais teses, tão desrespeitosas elas se mostram para com a memória do nobre sangue do falecido marido, que deus o guarde bem guardadinho e a conserve sem achaques e viçoso o seu amante. É gente de índole cabotina a que se dedica àquela boataria reles das pedras roubadas e, imagine-se, a aspergir pelas goelas imundas que ela, uma senhora da sua condição, vive há décadas amantizada com o tendeiro. Disparates e calúnias sem vergonha! Só o requisitou, garante, depois de enlutar.
Conta, porém, quem por ali vive (a Sra. D. Maria Laudecena rejeita tudo, naturalmente, era o que faltava) que, uns bons metros antes dos altos portões da quinta, há já várias décadas, em alturas em que as criadas vão às compras com o motorista, se ouvem, demonstrando que enorme futuro poderia ter tido como soprador do vidro, os uivados prazeres do Sr. Aurélio possuindo a Sra. D. Maria Laudecena e esta lhe respondendo com agradados queixumes de invulgar vigor para a idade que se lhe desconhece mas que se lhe adivinha. O meu amigo veja lá, ainda há dias ela me escreveu, que a populaça toda se posta de ouvido colado ao portão, a fim de escutar a felicidade alheia. De gargalhada fácil e, assegura-me sem pejo, farta de carnes (e como o merceeiro gosta das suas carnes), é mulher de humor, aquela com a qual tenho o prazer de me corresponder e o Sr. Aurélio de se deitar. Diz-me que, se um destes dias lhes ocorre irem deleitar-se para junto das águas retidas por uma represa mandada construir pelo avô do seu falecido marido, ainda lhes aparece a patuleia de óculos de mergulho, escafandros ou submarinos, só para testemunhar o que deus mandou.
Entristece-me não ter mais espaço para a apresentar a quem me lê. Não nos espantemos, contudo, e espero que mais tarde do que cedo, se um dia viermos a saber mais sobre ela. Garante-me haver muitos registos diarísticos e autobiográficos nos volumes que tem vindo a confiar-me. Embrulhados em papel pardo, atados com fio de sisal pelas mãos maciças do Sr. Aurélio, chegam-me trimestralmente, sob a condição de nada daquilo eu ler antes de ela morrer, grossas pilhas de páginas manuscritas com caligrafia de uma minúcia desenvolta. A minha velha amiga – a cada carta demonstrando que, ao pé dela, os trapos não são velhos, mas pré-históricos –, a Sra. D. Maria Laudecena, farta de carnes, não precisa já de seduzir-me para a riqueza dos seus escritos – eu acredito e aguardo sem pressa.