“Sobrevivemos a duas guerras mundiais, três grandes fomes, o holocausto, a grande purga, a explosão de Chernobyl, a ocupação da Crimeia, e uma guerra no sul. Tentaram destruir-nos tantas vezes, não conseguiram. Quem pensar que os Ucranianos serão amedrontados, derrotados ou rendidos, não sabe nada sobre a Ucrânia!” As palavras são de Volodymyr Zelensky, o ex-humorista, argumentista e ator que chegou a Presidente da Ucrânia e que se agigantou, confrontado com uma invasão bárbara do seu País pela poderosa Rússia de Putin. Ao oitavo dia de guerra na Ucrânia, e o mundo ainda assiste em choque à escalada de confrontação, tentando apoiar o país e fazendo contas e conjeturas sobre o que pode estar para vir adiante e os efeitos colaterais deste conflito.
“O Ocidente cometeu um dos grandes erros da sua história com Putin. Ignorámos os sinais que Putin deu com a Chechénia em 1999, meses depois de chegar a Primeiro-Ministro, a invasão da Geórgia em 2008, a invasão da Crimeia em 2014. Mais. Fizemos acordos que colocaram a Europa dependente da energia russa… nomeadamente a Alemanha, com Gerard Schröder e Angela Merkel. Agora temos de lidar com um monstro que deixámos crescer”, diz Mafalda Anjos, diretora da VISÃO.
O Ocidente foi tolerando os sucessivos avanços russos – Chechénia, Geórgia, Crimeia – como uma espécie de ‘guerras civis’ nos domínios da ex-URSS, sublinha Filipe Luis, editor-executivo. “Protestava, mas debilmente, e continuava a fazer negócios com a Rússia… A Ucrânia é diferente: consolidou-se como país soberano, já não é visto como uma ex-república soberana, decidiu resistir e está nas fronteiras da UE e da NATO. E até regimes que não são grandes exemplos de democracias liberais – Polónia, Hungria – voltam a ter o sentimento de pertença à União Europeia. Esta unidade é um aspeto positivo que a invasão da Ucrânia provocou”, explica.
O mundo mudou em poucos dias, a partir do momento em que se percebeu a visão maximalista da invasão de Putin e a escalada das sanções económicas europeias. “Uma frase que parece estar a circular por Bruxelas é, ironicamente, de Vladimir Lenin: ‘há semanas em que acontecem décadas.’ Foi isso que se passou esta semana”, aponta o jornalista Nuno Aguiar. “Desde sábado à noite que estamos a assistir à Rússia a transformar-se num Estado pária, uma Coreia do Norte gigante. Nos próximos tempos, ninguém quererá colocar um euro na Rússia e, assim que puder, tirará de lá o seu dinheiro.”
Uma das mudanças significativas foi o facto de a Alemanha ter decidido aumentar o Orçamento da Defesa para 2% do seu PIB. “Algo que, outras circunstâncias, teria feito disparar todas as campainhas de alarme dos seus vizinhos europeus… O contexto justifica, pelo contrário o aplauso do Ocidente à medida anunciada pelo Governo alemão, que agarrou bem a oportunidade para rearmar a Alemanha. Era preferível que a percentagem do PIB em Defesa viesse do Orçamento da União Europeia, para ser aplicado numa política de defesa comum, e não dos países em concreto… Noutras circunstâncias, toda a gente estaria já a recordar a tradição militarista da velha Alemanha. O que pensaria a França? Ironias da História…”, comenta Filipe Luís.
Além das mudanças económicas, há também uma revolução geopolítica a acontecer. “Morreu o consenso internacional que sugeria que a forma de controlar estas potências era integrando-as na economia internacional, fazendo negócio com as suas empresas, entrando nos seus conselhos de administração, organizando lá eventos culturais e desportivos”, refere Nuno Aguiar. “Hoje, quando Moscovo está a disparar mísseis sobre a Ucrânia, esta visão parece ingénua. A globalização não voltará a ser como era.”
“A Ucrânia pode tornar-se num fardo como o de Afeganistão para Brejnev. E com a teima na Ucrânia, Putin corre o risco de perder a Rússia. Já foram detidos mais de 6000 russos que se manifestaram contra a ocupação, e ainda não começaram a sentir no bolso os efeitos das sanções impostas pelo ocidente que vão corroer por dentro a imagem de Putin. As vozes de contestação são hoje, num mundo conectado e muito acelerado, cada vez mais difíceis de conter”, antecipa Mafalda Anjos. “Numa semana, Putin conseguiu fazer o que muitos pediam há décadas: uma Europa mais unida e mais forte e com coragem para assumir um papel preponderante no mundo”, resume.
Para ouvir em Podcast