Voltou, em boa hora, o debate em torno das ordens profissionais, os seus tentáculos corporativistas e as restrições no acesso às respectivas profissões. Deram entrada algumas iniciativas legislativas no Parlamento com a pretensão de eliminar certos entraves que se multiplicam pelas ordens em Portugal. Mas, indo por partes, importa começar pela principal responsável por esta nova reacção legislativa – a Ordem dos Advogados.
No passado dia 17 de Setembro, foi aprovada, na Assembleia Geral da Ordem dos Advogados, uma proposta de alteração ao seu Estatuto. Mais concretamente o artigo 194º, alínea a), do Estatuto da Ordem dos Advogados que visa limitar a inscrição como advogados estagiários apenas aos “titulares de licenciatura em Direito com o grau de mestre ou de doutor, ou o respetivo equivalente legal, e bem assim com Pós-Graduações reconhecidas pela Ordem dos Advogados, nomeadamente LLM, sendo este requisito dispensado na eventualidade da licenciatura ter sido alcançada ao abrigo de organização de estudos anterior à vigência do Decreto-Lei n.º 74/2006, de 24 de março”. Esta proposta, que carece ainda de debate e votação na Assembleia da República, não só desencadeou uma merecida onda de repúdio por parte de muitos que acreditam na igualdade de oportunidades no acesso à profissão, como despoletou, até agora, três iniciativas legislativas contrárias a este tipo de limitações.
Repare-se: a salvaguarda da qualidade do exercício da Advocacia e a manutenção de requisitos que lhe permitam assegurar a dignidade e o prestígio da profissão não podem estar sustentadas em bloqueios desmesurados e tendencialmente corporativistas.
A intenção que foi aprovada na Assembleia Geral da Ordem dos Advogados é a mesma que foi reprovada pela Assembleia da República em 2015. O argumento principal idem: a crença infundada de que os cursos de Direito pós-Bolonha não facultam conhecimentos suficientes para o exercício da profissão.
Ao exigir uma pós-graduação, o grau de mestre ou doutorado, a Ordem dos Advogados ultrapassa as suas competências na acreditação e avaliação dos cursos de Direito em Portugal, dando um sinal péssimo e injusto quanto à qualidade das licenciaturas pós-Bolonha. Note-se que esta não é uma matéria que compita às ordens profissionais – se existem dúvidas quanto à qualidade dos cursos nas instituições de ensino superior portuguesas, recorra-se à Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior. Sejamos claros: as instituições de ensino superior, os respectivos corpos docentes e alunos merecem mais respeito.
Evidência disso mesmo é o erro grosseiro cometido por quem formulou a proposta ao incluir um LLM (acrónimo de Legum Magister) enquanto pós-graduação, quando esta formação corresponde precisamente ao grau de mestre.
A este propósito, terá o Senhor Bastonário uma visão diferente da do senhor Professor Catedrático da Universidade de Lisboa e da Universidade Autónoma de Lisboa?
Há ainda um outro ângulo pernicioso na proposta aprovada pela classe dos advogados: o saudosismo quanto à ideia de que os cursos de antigamente é que eram a valer. Estimular o sentimento de que a formação de advogados licenciados pré-Bolonha (uma franca maioria) é superior aos juristas pós-Bolonha não é ingénuo no sentido da dinâmica eleitoral da própria Ordem dos Advogados. Alia o pior de duas dimensões: uma forte restrição para protecção da classe profissional vigente, típica do corporativismo; e o despertar de uma noção infundada de que as gerações mais velhas são mais capazes do que as novas gerações, típico do populismo.
Neste âmbito, para aqueles que considerem o termo corporativista excessivo, não deixam de ser relevantes as considerações apresentadas pela Autoridade da Concorrência e pela OCDE, cujo teor revela o excesso de condicionamento no acesso à advocacia em Portugal, em função dos elevados encargos que comporta.
Por outro lado, esta atitude agrava, logo à partida a liberdade de acesso à profissão, prejudicando mais quem pode menos, ao adiar o começo da carreira profissional e ao gerar encargos acrescidos, num universo onde os cursos de mestrado ou LLM comportam valores elevadíssimos no pagamento das propinas. Não serei o único que conhece múltiplos casos de pessoas habilitadas e capazes que colocam de parte o ingresso imediato no estágio pelo factor económico: ora pelas despesas avultadas de inscrição, ora pela circunstância de milhares dos estágios não serem devidamente remunerados (quando o são).
É indesmentível que a presente circunstância já provocou uma elitização pouco recomendável na classe. A proposta agora em discussão, ao multiplicar os custos e a progressão de carreira, só vai afunilar ainda mais o padrão; recordo que os mestrados menos dispendiosos nas faculdades de Direito não são inferiores a €3.000.
Num paradigma em que é necessário, para além do óbvio grau académico de licenciado, 18 meses de estágio, repletos de formações de mais-valia duvidosa, apresentação de intervenções e relatórios, provas e exames finais de admissão para inscrição como Advogado, impor o requisito de um grau académico adicional é, não só desproporcional, como digno de uma organização que procura impor obstáculos corporativistas injustificados.
De que forma é que a obtenção de um LLM aumenta significativamente as habilitações dos candidatos à frequência do estágio à Ordem dos Advogados? Ou de que modo a obtenção do grau de mestre, numa oferta hoje ultra variada por parte das faculdades de Direito (muitos destes cursos não estão, nem devem estar orientados para qualquer vertente de índole mais prática), levará inquestionavelmente à melhoraria da qualidade e das competências dos futuros advogados? Os mestrados são opções de especialização, por parte daqueles que pretendem aprofundar determinadas temáticas e, assim, tornarem-se mais conhecedores e proficientes. Este valor acrescentado deveria ser julgado por quem contrata ou solicita estes serviços, não pela ordem profissional, sendo certo que um advogado poderá sempre complementar a sua actividade com formação académica posterior.
E se a vontade é a de exigir esta especialização, no momento da inscrição, não deveriam os candidatos ao estágio estar dispensados de certas formações facultadas pelos centros de formação da Ordem, na medida em que já as tinham recebido nos ciclos de estudo que agora procuram exigir?
Esta proposta gera, ainda, uma percepção mais bizarra: a de que os actuais advogados sem grau de mestre, cujo percurso de admissão foi concluído e cuja carreira profissional falará por si, segundo o Bastonário da Ordem poderão não ter os conhecimentos suficientes, porque “Bolonha serviu apenas para o Estado poder desinvestir no Ensino Superior”.
Perante este atentado contra o acesso à profissão, avesso ao mérito como critério primordial para o início de carreira e a evolução profissional, esperamos que a maioria dos 230 deputados se expresse no sentido de chumbar uma proposta desmedida, injusta e teimosa, provando que, num país repleto de quintas e ordens, ainda há espaço para a Lei e o Estado de Direito prevalecerem.
Presidente da Juventude Popular e Advogado com inscrição suspensa a seu pedido
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.