Tem de haver, tem de existir, tem de se criar uma petição pública urgente contra o coletivo que está a julgar os três inspetores do SEF que mataram o cidadão ucraniano no aeroporto de Lisboa. Peço desculpa: não mataram, não se aplica, mas cometeram ofensas corporais graves, que tiveram um resultado deselegante. O senhor morreu, para espanto de todos. Não era velho, nem fisicamente debilitado, nem visivelmente esfomeado, mas foi-se. Apagou-se. Morreu. Nas mãos deles e no espaço de uma Autoridade nacional. De epilepsia disseram.
Mentira, escreveu o médico legista. Morreu sim, mas do tratamento de elevada categoria que lhe foi administrado por três inspetores, e presume-se que por mais alguém, durante as 48 horas que este no SEF. E só 48 horas. Que desilusão. O cidadão ucraniano até tinha corpo para aguentar mais. Aqui alguém falhou, e muito, e foi o médico legista. Viu e disse o que não devia. Analisando o caso, verificando o resultado, e escutando os testemunhos, o Ministério Público acusou os inspetores de homicídio qualificado. Que outra coisa poderia ser? (Para poupar os leitores vamos passar por cima de todas as tentativas de encobrimento, dos botões de pânico, da leveza das anteriores chefias, e do tempo que passou até se perceber o que tinha acontecido, e da resposta tardia, mas adequada do Estado em relação à viúva e filhos. São pormenores maçadores.)
Em final de julgamento, o coletivo de juízes fez um alerta às partes, para evitar qualquer surpresa: isto não é homicídio qualificado, nem de longe, mas ofensas corporais muito graves, com um resultado agravado. Deliciosa esta criatividade das nossas leis e códigos. Estupefatas, calcula-se, as partes ficaram sem saber o que dizer. Dormiram sobre o assunto, e agora, nas alegações finais, o MP trocou o homicídio pelo resultado agravado. Isto não merece uma petição pública? Isto não é um insulto à Justiça popular, que também já tinha uma sentença? Estamos todos perplexos. Pasmados. Assombrados. Espantados e embasbacados. Antes do final do julgamento os juízes disseram o que queriam. Afinal a Justiça serve-se com um menu.
Isto não tem consequências? Uma, desde logo: centenas de homicidas a cumprir 25 anos de prisão deverão exigir a requalificação dos seus crimes. Se é para uns, é para todos. Depois, para os homicidas ainda não sentenciados há aqui uma atenuação a ponderar e a exigir. Fica mal no currículo ser homicida, mas sempre passa melhor ser apenas autor de ofensas corporais graves, com resultado agravado. Alguém percebe o que é isto? Pois, ajuda, e a pena é muito menor. E finalmente, para os que gostam destes exercícios físicos e mentais, que para uns é tortura e para outros bullying agravado, sempre há uma forma diferente de ver as coisas. Por exemplo: três amigos, cidadãos simples, mas não normais, que gostam de bastões, mas não pertencem a nenhuma autoridade, agarram numa pessoa, que acham que lhes está a mentir, metem-no num espaço fechado, dão-lhe logo ali uma carga de pancada, forte feia, depois amarram-no ou mandam amarrar, com aquelas fitas de colar caixotes, e durante 48 horas vai levando sovas pesadas, sem comer nem beber, presume-se, amarrado e vagamente consciente como estava. Em resultado disso, e porque lhes mentiu, o homem morreu. Inesperadamente. Mas ninguém o queria matar. Só espancar. Só amarrar. Só seviciar. Só torturar. Será que estes três amigos vão ser acusados de homicídio qualificado? Nem pensar.
Não há petição? Não há indignação? Não há revolta? Assim não poder ser. Este coletivo merece o mesmo tratamento aplicado ao juiz Ivo Rosa, que é «um perigo à solta», disse Marques Mendes. Pior neste caso: é um perigo coletivo à solta.