A primeira coisa a saber num Orçamento de Estado, que neste momento todos desconhecemos, são os pressupostos macroeconómicos para o País, dos parceiros com quem mais lidamos economicamente, e os da União, caso a caso, e englobados. Sabemos que o Governo aponta para um défice de 4% em 2021, e logo aqui está um dogma de fé. Eles acreditam. Em primeiro lugar, aliás, é preciso saber qual vai ser o tamanho do défice deste ano, que deve ser de assustar. E quanto mais elevado, mais difícil de recuperar para o ano. Depois falta a previsão PIB, que será o segundo dogma, nada comparado ao da Santa Trindade. Uma desgraça para 2020, e dificílimo de recuperar em apenas um ano. Nós, dizem os melhores especialistas nacionais e internacionais, vamos ter graves problemas na criação de riqueza antes de 2022 ou 2023. Nós e todos os outros.
Se Espanha, França, Itália, Alemanha e Reino Unidos, só para citar alguns, esperam quedas do PIB de dois dígitos, como é que estarão por esta altura, em 2021? A achar que o pesadelo acabou? A negociar como se tudo estivesse a correr bem? A vender como se os consumos internos e externos estivessem em alta? É o terceiro dogma deste milagre. Só se voltarem o Três Reis Magos. Com os seus presentes. Não se conhece ainda o Orçamento, apenas medidas avulsas, que custarão muito dinheiro, e estamos muito longe de perceber qual é o nível de receitas que o Governo antecipa, em papel, mas certamente longe da realidade. O Governo funciona como se o Estado fosse uma empresa: tem intervenção direta sobre os custos, que pode cortar ou cativar sempre que decidir, mas não tem nenhum controlo sobre a receita. É o que pode ser em função de vários fatores não controláveis aqui, ou lá fora.
Claro que se pode fazer um Orçamento completamente irreal, não atingível, e com pressupostos mágicos. Claro que se tem sempre a possibilidade de fazer um retificativo, e mais outro, e aqueloutro. É como navegar pelas estrelas, mas com o céu totalmente nublado.
Se a tudo isto acrescentarmos as exigências de última hora dos parceiros à esquerda, então o Governo está no fio da navalha, encostado à parede, e a ver se alguém o salva. Compreende-se. Há um momento no «excel» em que as contas não fecham. Não batem certo. Claro que há sempre a possibilidade de mexer em cima, nas receitas, para aguentar as despesas, os custos e o défice.
Convém, contudo, não perder de vista o estado em que estamos: o consumo interno não aguenta tudo, as empresas estão sem mercado nem saídas, os impostos não abrandam, as despesas sociais estão a crescer muito, como em qualquer crise, mas nesta muito pior, e poderá chegar o momento em que o país se tornará ingovernável. Não dá para tudo. A crise económica e financeira tem uma taxa de contágio muito difícil de quebrar. Não há setores imunizados, saudáveis, tranquilos. Como todos dependem de todos, a crise é sistémica. Por tudo isto não deveríamos colocar uma elevada carga de ansiedade neste Orçamento. O que vier agora, vai ser mudado mais tarde. É apenas um exercício dogmático, baseado na fé e na intervenção divina. Qual é a Igreja do Governo?