O primeiro-ministro, ao Expresso, mostrou que está profundamente irritado com o Carteiro. Bateu-lhe à porta, e não gostou. Deu-lhe más notícias, e ficou danado. «Não tem autoridade» para fazer isso. Para lhe entregar um relatório. Para o avisar de uma catástrofe. Para lhe dizer que há mortos. «Acabou a conversa». Quem é você para me dar essa notícia? Quem o mandou fazer isso?
Foi assim, mais ou menos, que o primeiro-ministro reagiu à auditoria da Ordem dos Médicos ao Lar de Reguengos. Havia um desastre em curso, os utentes e doentes estavam misturados, não existiam cuidados básicos, com os trabalhadores contagiados, e as condições eram degradantes. Por favor façam qualquer coisa. Por favor tomem medidas. Por favor ajudem os idosos.
Isto era a mensagem que a Ordem fez chegar ao Ministério da Segurança Social, que a ministra não leu. Podia não ler, mas alguém leu, na altura? Não, obviamente. O médico delegado de Saúde Reguengos nunca foi ao Lar, apesar de saber o que se estava a passar, porque tem mais de 70 anos – não devia estar reformado? – e integra os grupos de risco, a ARS tentou tardiamente convocar médicos de outras áreas, que não apareceram, com a justificação de que não podiam fazer nada num Lar, sem condições para a prática de qualquer ato médico, e sugeriram o envio dos doentes para o Hospital. Os mortos, entretanto, acumulavam-se.
A Ordem, que pode fazer auditorias «em todas as situações em que se praticam atos médicos, em instituições públicas ou privadas, nomeadamente quando não estão a ser exercidos em condições», disse ao CM o delegado regional, desencadeia uma inspeção urgente, faz um relatório dramático, e avisa as autoridades.
Resultado prático: afinal a Ordem excedeu-se. Ultrapassou as suas competências. Não tinha de fazer nada. Há nisto, nesta fúria, algo de surreal. O problema é da Ordem, ou da vergonha do que se estava a passar no Lar de Reguengos? A responsabilidade é do Carteiro? Foi a Ordem a alertar, poderia ser o guarda noturno, ou o senhor do café da esquina. O que é que deu ao primeiro-ministro? O Lar é que era crítico, não a Ordem. O Ministério Público decidiu em horas apurar responsabilidades, não perdeu tempo, nem começou a disparar contra quem deu a notícia. É urgente saber como aconteceu aquele desastre, quem não agiu e devia, quem foi desleixado e negligente, quem fez de conta que estava tudo controlado.
Assim, de repente, até parecia que Reguengos de Monsaraz era na Rússia. Não se passa nada. E se passar ninguém sabe.