José Luís Peixoto
Gorongosa
Os leões não querem guerra. Os gnus não querem guerra. Os javalis-africanos não querem guerra. Os pala-pala não querem guerra. Os elefantes não querem guerra. Os animais, todos eles, só querem viver. Os animais não esqueceram.

Aquele emprego que eles têm lá em Bruxelas
Em janeiro, passam exatamente trinta anos desde que Portugal é membro da União Europeia. Quem irá comemorar esse aniversário?

Dívidas
Quanto devemos aos credores internacionais? Definiram juros e emprestaram aquilo de que não precisavam a outros que estavam aqui e que se retiraram na hora de pagar

Dois em mil
Uma rapariga ficou parada ao meu lado. Olhei para ela. Não olhou para mim e foi-se embora. Passados minutos, voltou

O povo
Por baixo do viaduto, o barulho da multidão é mais alto, faz eco. Homens pendurados em copos de vinho tinto e oleoso; mulheres a transpirar diante fogões, botijas de gás, bifanas, entremeadas e couratos

Causa própria
Vejo no telejornal o rosto de alguns dos prejudicados pelos bancos. As poupanças de uma vida, dizem eles. Mesmo através do ecrã, dá para perceber que perderam muito mais do que isso. Gritam contra portas fechadas, contra muros de pedra

O último a esquecer
Ao contrário de todas as outras provas, em que se premiava os mais rápidos, nesta corrida de bicicletas ganhava o último a chegar à meta

Boné
Não faltam opções e regalias aos escritores. São artistas e, se quiserem, podem pentear-se raramente

As palavras invisíveis
Os segredos retiram lógica ao mundo. Aquilo que se omite priva os outros de compreenderem as razões dos episódios a que assistem

Senhoras e rapazes
Assim, é certo que, na Bangla Road, em Patong,Tailândia, não existe uma ladyboy chamada Khem. Não sou capaz de recordar o perfume açucarado do seu pescoço porque ela não se sentou no meu colo

Outro aqui, outro alguém
Não acredites que basta um avião para alcançar os lugares mais distantes

Península, ponto de interrogação
Nuestros hermanos? Só se estivermos a falar daqueles hermanos que foram separados à nascença, criados por pais completamente diferentes e que, depois de muitos anos, por enorme acaso, se apercebem de que são hermanos. Normalmente, essas histórias dão belos telefilmes

Aquilo que os meus amigos esperam de mim
Não escrevo prefácios, não sugiro os livros, não faço elogios públicos, não dedico textos. Os meus amigos sabem tudo isto sobre mim

Conta lá a história das bibliotecas itinerantes
Na formação e na vida, a televisão não substitui a leitura e o cinema

Os prémios recebem-se na altura devida e têm muitas formas
Havia jornalistas de suplementos literários e de revistas sociais, a uns falava-se de uma maneira, a outros falava-se de outra. Essa ginástica não era difícil porque eles próprios falavam de formas diferentes

Uns a imaginarem os outros
Deixo-te os números, esses são concretos: as oitenta e cinco pessoas mais ricas do mundo possuem tantos recursos como a metade mais pobre de toda a população do planeta

Rouba-se
Aquilo que mais me choca é, neste país, uma agência imobiliária tão conhecida, ter ladrões deste nível. Saber que em todas as atividades há maus profissionais não desculpa tudo

Na despedida de um amigo
Não me lembro de melhor lugar para nos despedirmos. Nesse dia, o Urbano sorriu muito e fadigou-se de tanto entusiasmo. Foi um dia bom

O meu lugar
Nenhum continente é demasiado grande ou demasiado estéril para me impedir de atravessá-lo

Prefiro dizer o título no fim
Deitado sobre a colcha da cama do meu quarto, eu tinha quinze, dezasseis anos e sabia que aquele livro estava a mudar a minha vida para sempre

Luta de classes
Admiro o povo ao qual pertenço. Não o povo mitificado, admiro o povo quotidiano. Gosto de ir a feiras. Gosto de comer frango assado com as mãos. Devo tanto à cultura deste povo como devo a Dostoievski
