Um dos primeiros musicais a que assisti foi Hair. Muito jovem na altura, lembro-me bem como toda aquela revolução da juventude contra a sociedade norte-americana, e a guerra no Vietnam em particular e o status quo mundial generalizado, fez eco em mim. A canção Aquarius e a mensagem duma nova era dava esperança num mundo mais solidário, fraterno e pacífico, que afinal acabou por não existir.
Foi aí que deixei de acreditar em horóscopos! Afinal o limiar da era de Aquário veio e passou e as mudanças, se as houve, não foram para melhor.
Os que percebem destas coisas (ou não… enfim.) dizem que agora é que Aquário entra não sei em que casa e o mundo enfrentará mudanças radicais, estando num ponto de não retorno, que poderá ser negativo ou positivo, mas que será certamente diferente.
Para mim, continua a ser uma previsão a assumir apenas no final do jogo.
Não podem, no entanto, ser ignorados estes movimentos de contestação, este espírito de mudança que anda no ar e que se materializa em inúmeras manifestações de cidadãos anónimos que, aos milhares, saem para as ruas exigindo liberdade e direitos em países onde era impensável que tal viesse a acontecer.
Embora estejamos um pouco anestesiados com a bola aos saltos nos relvados, o certo é que o mundo assiste hoje à revolta dos silenciosos. Talvez não estejamos a entrar na era de Aquário, mas estamos a assistir à manifestação da geopolítica do desespero, sem qualquer lugar para dúvida.
Desafiando regimes, pondo em risco as próprias vidas, temos visto mulheres no Irão e no Afeganistão manifestarem-se, reclamando os seus direitos, contra regimes misóginos e ditatoriais. De rostos destapados, muitas delas acompanhadas por homens que assim se solidarizam com uma luta mais que justa, desafiam os regimes dos seus países duma forma que sabem poder custar-lhes a vida
Desafiando regimes, pondo em risco as próprias vidas, temos visto mulheres no Irão e no Afeganistão manifestarem-se, reclamando os seus direitos, contra regimes misóginos e ditatoriais. De rostos destapados, muitas delas acompanhadas por homens que assim se solidarizam com uma luta mais que justa, desafiam os regimes dos seus países duma forma que sabem poder custar-lhes a vida.
Ver tais manifestações duramente reprimidas, saber que o futuro que espera aquelas e aqueles que tombarem às mãos policiais, será curto e doloroso, faz-nos pensar no extremo a que deixámos estas situações chegar e que levam a estas atitudes quase suicidas.
A comunidade internacional (seja lá o que isso for) não está isenta de culpa relativamente à proliferação destes regimes totalitários e repressivos.
A forma como abandonámos o Afeganistão à sua sorte e às mãos dos talibans, argumentando, hipocritamente porquanto sabíamos de antemão que tal não iria acontecer, que o regime que suportavam era radicalmente diferente do de há vinte anos, devia encher-nos de vergonha. Sobretudo devia-nos servir de lição para não repetirmos os mesmos erros.
Falamos de direitos humanos, mas cedo os esquecemos perante razões de caráter económico.
Não bastam frases atiradas em discursos para que algo mude e isso estas mulheres aprenderam à sua custa e estão dispostas a dar a vida para que nada fique como está, para que os seus direitos sejam reconhecidos por aquilo que são: direitos humanos. Não existe género, opção sexual, religiosa, política ou etnia no articulado do primado dos Direitos Humanos. Estes são inalienáveis e é urgente que sejam também, como afirmam, universais.
Não podem ser colocados em stand by, seja qual for a razão.
Se o espanto destas manifestações maioritariamente femininas foi enorme, não menor foi o grito de revolta que ecoou na China, e que surpreendeu tudo e todos, habituados como estamos a que o partido se confunda com o país e até com o indivíduo.
Assistimos, impávidos ao aprisionamento de milhões de chineses nas suas casas, nos seus locais de trabalho, sob o pretexto de erradicar uma pandemia. Como se qualquer um de nós, sem que seja virologista, não soubesse que nenhuma pandemia pode ser erradicada completamente sem a imunidade de grupo!
O argumentário chinês fez aumentar o dumping social através do estabelecimento quase generalizado do trabalho escravo.
O cidadão comum, incrédulo, toma conhecimento da existência de milhares de funcionários presos há meses nos seus locais de trabalho, sem puderem voltar a casa ou abraçar a família. O cenário de contenção da epidemia é quase apocalíptico lembrando tristes relatos de totalitarismos futuristas.
Perante a situação no Afeganistão, no Irão e sobretudo na China, não vi tomadas de posição ou definição de sanções por parte do Ocidente.
Paladinos da democracia, da liberdade e da igualdade, deixamo-nos manietar pelo medo bélico, no caso do Irão ou económico no que se refere à China.
E assim vamos falando daquilo que não estamos dispostos a defender caso seja necessário sairmos da nossa zona de grande conforto.
Ontem, ao visionar as imagens de milhares de chineses pedindo a demissão do Xi Jinping, situação inconcebível até há bem pouco tempo, não pude deixar de recordar aquele jovem enfrentando os tanques em plena Praça Tianamen. Já lá vão mais de trinta anos.
Será que desta vez também os vamos deixar à sua sorte enquanto elogiamos covardemente a sua coragem?
Não sei se estamos a entrar na era de Aquário.
Mas sei que o povo está a sair à rua e nada mais será como dantes.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.