Os nomes saltaram para as primeiras páginas dos jornais e abertura de telejornais, pelas piores e mais dramáticas das razões. Na memória temos ainda um – Jéssica – mas dos outros, que na altura nos arrepiaram, já praticamente não nos recordamos. Valentina, Leonor, Henrique, Daniel, Joana. Destes, talvez o caso Valentina seja o que ainda nos traz à memória o macabro e inconclusivo acontecimento. Dos outros, varreu-se-nos a indignação e a memória.
Crianças a quem foi negada a infância e que a morte colheu prematuramente e de forma violenta às mãos de quem as devia proteger.
Perante o número crescente de tristes casos como o da Jessica (da Valentina, da Maria, do Manel e de tantos que não têm nome sequer) urge criar a figura dum Provedor da Criança
No ano passado, os casos que chegaram ao conhecimento das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens foram de cerca de 43 mil, mais 9% do que no ano anterior.
Aqui há semanas em plena cidade, uma criança de pouco mais de três anos deambulava pelas ruas esfomeada, descalça e suja. Já esquecemos o nome. Alguns até já não nos lembrávamos do caso.
Quererá isto significar que estamos aos poucos a tornar-nos insensíveis perante o drama destes pequenitos, a propósito dos quais já o poeta Augusto Gil na Balada da Neve perguntava: “…Mas as crianças Senhor/ porque lhes dais tanta dor?/ porque padecem assim?” Acontece que estávamos na época, em finais do século XIX/início do século XX e Portugal era um País duma miséria extrema, onde o trabalho infantil era visto como normal e os meninos (e adultos) das classes mais baixas andavam descalços famintos e pouco limpos.
Não duvido por um instante que, nessa altura, os maus tratos e negligência acontecessem. Mas tendo crescido numa das mais pobres aldeias de Portugal, na raia com Espanha, não me lembro nunca de crianças mortas violentamente à mão dos que os tinham à sua guarda. Lembro-me de morrerem de doença (o médico era um “praticante” do outro lado da fronteira em Almedilla), possivelmente de má nutrição, sendo certo que nas mais humildes casas, o alimento melhor era para o chefe de família que tinha que recuperar forças para o trabalho e em seguida para as crianças.
A orfandade era colmatada pela família próxima ou pelos vizinhos. Não me lembro de ver, naquela aldeia onde o pão era negro e conseguido a custo, crianças abandonadas ou maltratadas.
Sim, havia os castigos físicos, não os podemos escamotear, quer na escola quer em casa. E sem querer desculpá-las, essas práticas tinham como objetivo aquilo que consideravam como “educação” e não a maldade pura e dura, a perversidade, a animalidade, que hoje encontramos nestes crimes hediondos.
Já nem falo das crianças imigrantes, algumas completamente sozinhas, que desaparecem misteriosamente dos locais de acolhimento, sem que se saiba o seu destino. Nem das outras que sabemos serem vendidas nos mercados negros da prostituição, do comércio de órgãos ou na mobilização para a guerra.
Falo apenas daqueles que – perdoem o politicamente incorreto, mas talvez que assim entendamos – são os nossos. Os que brincam nas nossas praças e jardins, que vão às escolas, que convivem, porta com porta, connosco… e que de repente são mais um número estatístico dos mártires da desumanização a que fomos acometidos.
Em Portugal existem leis e instituições de proteção dos jovens e crianças. Existem as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, estruturas interdisciplinares, cujo trabalho nem sempre é reconhecido e que carecem dum urgente enquadramento profissional. Existe o Instituto de Apoio à Criança. Existe o Ministério Público e a Provedoria Geral, que tem no seu âmbito uma pequena cláusula que abarca a proteção dos jovens e crianças em situação de perigo. Tudo existe no papel.
Aparentemente tudo falha!
Até quando vamos aceitar que meninos e meninas sofram maus tratos, negligenciados, sejam violados (as)? Bebés, senhores! Bebés! Até onde mais pode ir a animalidade humana?
É urgente que os maus tratos e a negligência contra crianças e jovens, à semelhança do que acontece com a violência doméstica, se torne um crime público, perfeitamente individualizado!
Perante o número crescente de tristes casos como o da Jessivca ( da Valentina, da Maria, do Manel e de tantos que não têm nome sequer) urge criar a figura dum Provedor da Criança! Não para criar mais uma estrutura. Mas para que estas situações não andem de “Herodes para Pilatos”, acabando por não serem assacadas culpas ao sistema de proteção que, já vimos, sinaliza, mas depois não protege. E porquê? Porque sai da área de intervenção duma instituição e passa para a outra que por sua vez a reencaminha para mais uma.
O tempo da criança não é o tempo do adulto. A ação tem que ser rápida e eficaz.
Não podemos conformar-nos com estes números negros que têm rosto e nos envergonham.
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