Por norma embirro com “Dia Mundial de…”.
Bem sei que se trata duma forma de relembrar os (as) que lutaram contra algo e por mais justiça.
Mas, na maioria dos casos (já para não referir os dias mundiais da importância da pulga na plantação da beterraba…), são formas de sossegar consciências adormecidas durante os restantes 364 dias.
No passado dia 19, foi dia Mundial da Violência contra as Mulheres como Arma de Guerra. Palavra de honra que desconhecia a existência de tal efeméride. Mas como digo, no caso deste tipo de “celebração” é como os santos: há um para cada dia.
Desde tempos imemoriais que as violações, as humilhações, a violência gratuita sobre as mulheres tem sido usada como arma de guerra. Ora, quando falamos de crimes de guerra, a violência contra civis indefesos, no caso das mulheres e meninas (também há em relação a homens, não façamos confusão. Mas em número bem menor) ele é duplamente grave.
E, no entanto, nunca vi nenhum processo ser levado a tribunal dos Direitos Humanos por este tipo de crime.
As mulheres e as meninas sofrem violações, mutilações, violência e humilhação, não apenas no cenário da guerra aberta. Sofrem no decurso da fuga e muitas vezes no local de acolhimento onde deveriam encontrar santuário
Em cenários de guerra, as violações revestem, para além do hediondo crime da utilização do corpo de outrem para seu prazer sem consentimento, uma clara vontade de humilhar, de desmoralizar o adversário.
Morrer em consequência dum tiro, uma bomba… pode não ser imediato mas é “natural” dentro da anormalidade do que significa uma guerra. Uma violação, uma mutilação é algo que mata aos poucos, que fica com a vítima até ao final da sua vida.
Em alguns casos, dependendo da cultura vigente, a vítima é condenada pela sua própria comunidade, tornando-se assim multiplamente violentada.
Há muitos anos em África, recolhi o relato duma criança (na altura já homem e pai de filhos) resultado duma violação em tempo de guerra. Este homem carrega até hoje o peso dum crime do qual é fruto inocente.
Rejeitado pela mãe, rejeitado pela sua própria comunidade, cresceu no meio de meninos que nunca o trataram como um deles.
“– Eu era o lixívia!” – dizia, fazendo alusão ao seu tom de pele, evidência duma miscigenação de várias gerações e que culminara com aquele ato hediondo. Naturalmente não conhecia o pai e era o cuco no ninho da casa, a lembrança permanente da humilhação, da submissão, do horror dos dias de guerra.
Valia-lhe uma avó que “morreu sem nariz nem orelhas”. Quando lhe perguntei porquê, respondeu-me como se fosse a coisa mais natural do mundo:
“-Já era muito velha, não valia para a cama.”
A história chocou-me por todas as razões, mas sobretudo pela natural resignação com que aquele homem, que fora anos depois obrigado a pegar em toda a família e fugir, falava.
Não havia ódio na voz. Apenas tristeza e medo. Tinha cinco filhas e nenhum rapaz. Era o único que podia protegê-las e sabia que seria em vão, caso se repetisse uma situação como a que dera origem a si mesmo.
Estes crimes têm que ser denunciados e levados à justiça, mesmo sabendo que nunca será suficiente.
As mulheres e as meninas sofrem violações, mutilações, violência e humilhação, não apenas no cenário da guerra aberta. Sofrem no decurso da fuga e muitas vezes no local de acolhimento onde deveriam encontrar santuário.
Mas a violência não se fica por aqui! Há mulheres que são “obrigadas” a prostituir-se para poderem sobreviver. Coloco o termo entre aspas para que os mais puristas fiquem confortáveis.
Há muita forma de obrigar. A necessidade também obriga!
Por isso é que quando me falam em tornar a prostituição em profissão reconhecida, me arrepio.
É que ainda há quem considere estas, “mulheres de vida fácil”.
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