Então hoje é o dia cento e quantos da guerra?
À força de vermos o conflito em direto, transformámo-lo num espetáculo quase futebolístico, em que se vão contando os dias e se mantem o impasse. Zero a zero no marcador. Não há vencedores nem vencidos e os espetadores parecem aguardar a todo o momento uma escalada que lhes aumente a emoção. Até porque começam a ficar cansados e indiferentes por mais chocantes que sejam as imagens.
Se no plano global parece não existirem vencidos, o certo é que não pára de crescer o número de feridos, estropiados e mortos que enchem campas rasas ou valas comuns.
Mas as maiores feridas, as que levarão a que este conflito se prolongue muito para lá do silêncio das armas, são as que ficam impressas na memória e na alma das pessoas. E, naturalmente, as que carregarão este fardo por mais tempo, serão as crianças.
A pedagogia atual é totalmente contra os brinquedos ou as brincadeiras que estimulem a diferenciação de género. Quando fui mãe, a palavra de ordem na educação dos rapazes, era não lhes dar armas ou outros brinquedos que lhes fomentassem a violência.
Os meninos e as meninas na Ucrânia não têm essa preocupação. Ver crianças pequeninas com réplicas de metralhadoras, espingardas, revólveres, a brincarem às guerras, devia dar-nos o tal murro no estômago de que falamos tanto mas que raramente sentimos de verdade.
Esta guerra está a criar um ódio que durará gerações.
Há poucas semanas, um jovem russo de 21 anos foi condenado a prisão perpétua por um tribunal ucraniano, por crime de guerra. O miúdo (pois que mais era senão miúdo?) não negou o ato hediondo praticado: ter atirado a matar sobre um civil indefeso. Mas disse tê-lo feito a mando superior
Temo que seja um sentimento que, para além de decorrer da situação em si (os miúdos imitam o que veem e teatralizam o que sentem), esteja a ser fomentado pelos adultos. Veja-se o pormenor de certos brinquedos. Em madeira, na sua maior parte, são réplicas quase perfeitas das armas que matam. Esse não é trabalho feito apenas por miúdos. Lembro bem que até para os carrinhos de rolamentos precisávamos aqui e ali duma “mãozinha” mais crescida.
Não. Aqueles meninos e meninas estão a ser ensinados a odiar, a matar se preciso for.
Se no quotidiano é muitas vezes difícil estabelecer a linha que separa a justiça da vingança, em tempos de guerra, essa linha atenua-se e a diferença quase desaparece.
Há poucas semanas, um jovem russo de 21 anos foi condenado a prisão perpétua por um tribunal ucraniano, por crime de guerra. O miúdo (pois que mais era senão miúdo?) não negou o ato hediondo praticado: ter atirado a matar sobre um civil indefeso. Mas disse tê-lo feito a mando superior.
Nenhum crime pode ficar impune. Os crimes de guerra e os contra a humanidade por maioria de razão. Mas naquele caso ter-se-á feito justiça ou praticado vingança?
Os crimes de guerra não podem nunca ser julgados por qualquer um dos beligerantes, exatamente para garantir que é aplicada a justiça.
Não me custa a crer que o jovem tenha sido obrigado a atirar. Sabe-se lá até debaixo de que ameaça. Ou não, quem sabe…
Mas essa era uma questão que tinha que ser levado a um tribunal independente e especialmente criado para o efeito.
Não se compreende a razão pela qual, falando-se tanto dos crimes de guerra que estão a ser cometidos durante este conflito, a comunidade internacional ainda não criou um Tribunal especial para a análise e julgamento de casos deste tipo.
Aguardar pelo final da guerra, é dar azo a que se pratiquem cada vez mais atos de vingança apelidados de justiça. Nuremberga não pode servir de exemplo: este é um conflito completamente diferente e necessita duma abordagem adequada à realidade que representa.
Estamos no dia cento e tal desde o início do conflito.
Não aguardemos pelo dia seiscentos e tal, sob pena de cairmos no primado de Talião que nunca é justiça mas sim vingança.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.