Começam a ser várias as vozes que fazem notar a dualidade de critérios e de atuação da comunidade internacional em geral e da Europa em particular, no que respeita ao tratamento dado aos refugiados.
Com efeito, a vaga de solidariedade e de apoio a que temos vindo a assistir desde o início da invasão da Ucrânia coloca claramente uma diferenciação A.C (antes do conflito) e D.C (depois do conflito) no que se refere quer às narrativas, quer à forma de atuar dos países europeus.
Os documentos internacionais, nomeadamente, a Convenção Relativa ao Estatuto de Refugiado da UNHR, são claros ao definir o direito ao estatuto de refugiado a, e cito, “toda a pessoa que, receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção daquele país.”
Em situações de conflito aberto, tal estatuto não coloca quaisquer dúvidas.
Como tão pouco existem dúvidas quanto à necessidade de proteção excecional das crianças e jovens nessas circunstâncias.
Desde a longínqua Declaração de Genebra de 1924 até aos protocolos de 2004, um relativo ao problema da venda/tráfico de crianças para prostituição e da pornografia infantil e um outro que trata da não utilização das criança em conflitos armados, passando por esse documento essencial que é a Declaração dos Direitos da Criança e do Adolescente da ONU, de 1954, estabeleceu-se como direito insofismável a igualdade de tratamento de todas as crianças independentemente da sua origem ou situação.
Não deixa pois de ser paradoxal que, mesma altura, em que aumenta a onda de solidariedade para com as crianças ucranianas, os números da ONU denunciem a existência de 5,6 milhões de crianças sírias a necessitarem urgentemente de ajuda humanitária, sendo que destas pelo menos 2 milhões estejam a viver em zonas de difícil acesso devido ao conflito que continua no interior da Síria.
Não será, pois, de admirar que estejamos a criar um mundo declaradamente fragmentado em duas realidades que, mais tarde ou mais cedo, se irão novamente confrontar.
É pois urgente pensarmos nisto.
Como é urgente também o conhecimento e a aplicação das leis internacionais no que toca à proteção das crianças refugiadas.
Em todos os conflitos (tome-se como exemplo o Portugal da II Grande Guerra) os “órfãos” de guerra, ou melhor dizendo, as crianças não acompanhadas, podem e devem ficar em segurança junto de famílias de acolhimento. Mas nunca serem adotadas
A este propósito saltou-me à vista uma pequena notícia surgida esta semana num jornal nacional, e que me provocou, não apenas arrepios como fez tocar todas as campainhas de alarme relativamente ao possível tráfico de crianças ucranianas refugiadas dentro do nosso País.
O título era “Suspensa a adoção de crianças ucranianas”.
Poder-se-ia tratar apenas dum headline para despertar o interesse. Mas o corpo da notícia deixava pouco lugar a dúvidas ao afirmar que o gabinete da ministra Ana Mendes Godinho terá tomado e, muitíssimo bem, a atitude de aplicar sem mais demora a legislação internacional que impede a adoção de órfãos de guerra enquanto durar o conflito.
Isto porque, como é fácil de entender, na situação caótica que se sobrepõe às armas, é impossível identificar sem sombra de dúvida a orfandade destas crianças. Para além de que as mesmas podem ter algures familiares com o direito de tutela.
Em todos os conflitos (tome-se como exemplo o Portugal da II Grande Guerra) os “órfãos” de guerra, ou melhor dizendo, as crianças não acompanhadas, podem e devem ficar em segurança junto de famílias de acolhimento. Mas nunca serem adotadas.
Ora o termo “suspender” pressupõe uma prática anterior que, no caso concreto, nos leva a concluir ter havido adoções antes da atitude tomada por aquele gabinete.
A ter existido essa prática houve aqui uma clara negligência e até um pactuar, se bem que – esperemos! – passivo, com um eventual tráfico de seres humanos.
Curiosamente e sem prejuízo do envolvimento global de todos os ministérios na gestão da questão migratória, o ministério de Ana Mendes Godinho, que em boa hora alertou e suspendeu o processo, não se encontra na “primeira linha” dessa mesma gestão.
Daí que, mais uma vez, se coloque a pergunta. Quem tutela, quem supervisiona, quem encabeça esta task force de acolhimento e integração? Quem responderá pelos ilícitos que possam vir a surgir mercê da dispersão de responsabilidades?
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