Não há explicação possível. Não há culpados e os inocentes são os de sempre: os que não têm voz, os que não conhecem os corredores dos palácios do poder, que nunca empunharam uma arma e para quem as palavras “diplomacia” e “diálogo” são apenas sons articulados sem conteúdo visível.
Não há nada mais que o caos e a incredulidade.
O Afeganistão é um cemitério de impérios, dizem. Mas não de imperadores. Esses fogem a tempo, refugiam-se antes de caírem.
Há dois relatos que conto no Deixar Aleppo que me aterrorizaram e que na altura me impediram de dormir várias noites. Revisitaram-me nestes últimos dias com a força duma vaga que nada nem ninguém pode parar.
O primeiro é o daquela estudante de medicina a quem cortam os olhos em pleno teatro anatómico durante uma aula porque olhava o corpo morto dum homem nu.
O outro foi o daquele interprete, ex professor de História, que fugiu nas condições mais desumanas, ao sentir a vida ameaçada por ter “ pactuado com o agressor”.
O primeiro foi-me contado na terceira pessoa, uma mulher sobrevivente ao massacre que se seguiu nessa mesma faculdade. O segundo foi em primeira mão.
Não esqueço o olhar completamente vazio de ambos e pergunto-me, se os olhos são as janelas do coração, onde o teriam perdido naquele caminho em direção a uma esperança mais ou menos gorada.
Os acontecimentos destes relatos, passaram-se em 2012 na Síria, às mãos do autodenominado Estado Islâmico.
Hoje olhamos o Afeganistão e trememos com as palavras ao vivo que nos chegam de quem sabe que vai morrer.
Vinte anos de guerra, 300.000 militares equipados, armados (hurra! Para a indústria do armamento !!!) e em menos duma semana regressa o fantasma dum regime que retrocede ao Paleolítico ( qual Idade média, qual quê!!).
A comunidade internacional treinou para a guerra, mas não criou nem formou estruturas para a paz.
Reconheço que permanecer numa guerra que não é “nossa” é impopular e , sejamos realistas, pouco justa para quem tem boots on the ground.
Mas a retirada é também uma acção militar e como tal necessita de estratégia e planeamento. O que aconteceu nos últimos dias no Afeganistão não foi uma retirada. Foi uma debandada sem glória, mas sobretudo sem honra.
Foi também e mais uma vez um falhanço (ou uma agenda escondida) dos Serviços Secretos Internacionais.
Não é possível que se tomem decisões deste teor sem que haja uma consulta prévia a estes serviços, a estas agências!
Alertaram para a hecatombe? Então a responsabilidade é exclusivamente política. Não alertaram? Então falharam em toda a linha e não servem para nada.
Perante uma conferência de imprensa de lobos a tentar, sem sucesso, passar por ovelhas, já há quem diga que :” Bem ..e tal… a coisa se calhar não é assim tão má… eles estão mais comedidos…”. Se isso tranquiliza certos espíritos… boa sorte. Mas que é uma pura duma demagogia disso não tenhamos dúvidas .
Agora as palavras de ordem são diálogo e diplomacia. Mas a diplomacia não é suposto intervir para prevenir os conflitos? E que diplomacia no caso da EU ? Nacional, cada país por si ou conjunta? Naturalmente conjunta em letra de forma. Mas na forma da letra vai ser escrita como?
Para os que temem ser invadidos escusam de se preocupar com vagas de refugiados. Não vai haver, não conseguirão sair.
Tão pouco gastem lamentos ou clamem pelas pobres mulheres e meninas afegãs.
Dentro duma semana já não serão notícia, como não são notícia os meninos que dia após dia dão à costa. Haverá sempre um qualquer jogo de futebol, ou um incêndio nos confins da floresta ou uma qualquer figura pública salta para a ribalta e que tomará a nossa agenda mental.
Enquanto não formos nós a correr nas pistas dos aviões, a cobrir o rosto, a sermos forçados a permanecer ou a fugir dum regime desumano, tudo ficará dentro das quatro paredes dos gabinetes confortáveis.
Uma ou outra acção sem grande consequência apenas para tranquilizar consciências enquanto do outro lado meninos de sete anos são levados para servirem como soldados e meninas com 12 são feitas noivas à força.
Enquanto não houver a revolução dos desesperados não acordaremos.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.