Para as gentes da raia, a fronteira é uma abstração que na maior parte dos casos apenas faz sentido formal. Não é raro antigos terrenos serem parte portugueses e parte espanhóis, numa situação que só representa algumas dores de cabeça aquando de partilhas. De resto ser “de cá” ou “de lá” é exatamente o mesmo.
Evidentemente que são indiscutíveis as diferenças administrativas, o estilo de organização e gestão territorial. Mas no mais tudo semelhante, até na forma cantada de falar. Os casamentos alargam as famílias que, dessa forma, esbatem ainda mais as linhas fronteiriças que alguém traçou.
Os momentos dramáticos foram sentidos dum e doutro lado, desde a Guerra Civil no país vizinho até à fuga à ditadura e à guerra colonial do nosso lado.
Está bem de ver que o convívio não foi sempre pacifico, como é normal em vizinhos eternamente obrigados a viver lado a lado. Disso nos fala a História e alguns vestígios que perduram. Mas, no computo geral, a convivência foi sempre pacífica.
Vem tudo isto a propósito duma iniciativa levada a cabo por uma destas aldeias da raia – Nave de Haver – que, mais uma vez, recriou os trilhos do contrabando.
Numa altura em que as nossas aldeias nada tinham para oferecer, em que as perspetivas de futuro eram nenhumas, em que as crianças corriam descalças pelas ruas, a escola era um privilégio apenas para alguns e a infância durava pouco, nessa altura, a única forma de sobrevivência digna era “levar a carga”
A Associação ABEIRAR quis desta forma recuperar a memória, prestar homenagem aos homens e mulheres que trilharam esses caminhos e ensinar aos mais novos o quotidiano que não consta dos livros de História, mas que é imperioso mostrar-lhes para que não se cometam os mesmos erros.
Dum e do outro lado da raia, os tempos foram negros, assim como a fome, o desespero e a falta de liberdade. Já pouco são os que relembram os grupos de famintos que passavam para o lado “de cá” durante a noite e atacavam as sementeiras colhendo frutos ainda verdes para saciar a fome. Mas a míngua era sentida dum e doutro lado pois que a terra é “maninha” e pouco dada a grande fartura. Na altura criaram-se os “guardas dos campos”, espécie de milícia popular que vigiava as colheitas. Mas a fome une as gentes e rapidamente se organizaram em certa aldeias, locais para que os “vizinhos” pudessem fazer as suas próprias culturas em paz.
Numa altura em que as nossas aldeias (e pouco mudaram em abono da verdade, apenas se esvaíram de população) nada tinham para oferecer, em que as perspetivas de futuro eram nenhumas, em que as crianças corriam descalças pelas ruas, a escola era um privilégio apenas para alguns e a infância durava pouco, nessa altura, a única forma de sobrevivência digna era “levar a carga”.
O que ia no saco de sarapilheira amarrado em duas orelhas às costas (arremedo de mochila moderna) era, as mais das vezes, desconhecido para aqueles homens e mulheres que se aventuravam de noite em total silêncio, por caminhos que só eles conheciam, atentos aos mínimos ruídos que podiam significar, na melhor das hipóteses, a perda da “carga”.
Nem todos porém tinham a sorte de palmilharem sem percalços, noite após noite, ano após ano, os caminhos do contrabando. Muitos acabaram presos e outros, ainda menos afortunados, tombaram varados por tiros sem origem definida. Que mais dava que fossem carabineiros ou guardas fiscais? A morte surpreendeu esses infelizes cujo único objetivo era poder colocar pão na mesa dos vários filhos que, ano após ano, iam surgindo “com a graça de deus”.
A reconstituição desta prática prestou homenagem também aos mortos no cumprimento do dever de sobrevivência, com flores colocadas em marcos que indicam o lugar onde caíram para sempre.
Vestidos com calças de “pana” (bombazine) e de alpergatas nos pés, dezenas de pessoas fizeram essa “peregrinação” homenageando um familiar ou apenas pela simples participação numa prática que permitiu a sobrevivência de toda uma geração.
Estas viagens à memória são as mais eficazes formas de combater os que querem fazer crer às gerações mais jovens que “antigamente é que era bom” que “ havia respeito”, que “não se toleravam comportamentos contra natura”, que “se vivia na humilde casinha branca onde o pai de família chegava depois dum dia de trabalho honrado e encontrava a mulher, rainha e senhora do lar e os filhos com roupas remendadas mas felizes”.
Escamoteiam-se-lhes a rude realidade dos que fugiam pelas mãos dos “passadores”, contrabandistas humanos, à guerra e à fome, à perseguição política e moral, ao espartilho dum país a preto e branco.
Esconde-se o medo, a fome e a miséria que grassavam e que obrigavam a que homens e mulheres honestos se vissem obrigados a infringir a lei apenas e só para poderem sobreviver.
Esta era a realidade do Portugal do pré-revolução.
Depois, nem tudo foram cravos, nem tudo foram rosas. Mas a possibilidade de plantar flores de qualquer cor foi a grande conquista que não podemos deixar fugir.
Obrigada à Associação ABEIRAR e a todas quantas mantêm viva a memória para as gerações mais novas .