A proliferação de “dias internacionais de..” tende a retirar-lhe a sua verdadeira importância, dando-lhes até um certo ar ridículo. E, nalguns casos, são-no.
A existência dum dia dedicado a uma determinada temática tem como objetivo chamar à atenção para realidades que passam mais ou menos despercebidas na espuma dos dias e na avalanche das notícias com que somos bombardeados constantemente. É um convite à pausa para reflexão sobre um tema específico e que necessita da intervenção consciente do mais anónimo dos cidadãos.
Pode não ser uma intervenção direta e, na maior parte dos casos, trata-se somente de despertar dum novo olhar sobre realidades que não nos são muito habituais.
O dia Internacional da Luta Contra o Tráfico de Seres Humanos é um desses casos.
Efetivamente, trata-se de um dos mais, se não o mais, lucrativo dos negócios ilícitos transnacionais e o mais hediondo. A utilização do ser humano como moeda de venda e compra, como mercadoria descartável, remete-nos à mais primitiva forma humana e é inadmissível no século XXI!
Ao longo da movimentação desde os países de origem até ao destino, milhares de crianças acabam por ser separadas do seu entorno familiar, seja porque se perdem, seja porque são pura e simplesmente roubadas à familia, seja porque esta acaba por não sobreviver às condições da viagem, seja até porque são vendidas pelos próprios familiares muitas vezes para financiar o trajeto dos restantes
As alterações políticas bem como as alterações climáticas, mas sobretudo os conflitos no Médio Oriente, levaram à maior movimentação demográfica da era moderna, em direção à União Europeia. Os dados da International Organization for Migration (IOM) apontam para 4,1 milhões de pessoas deslocadas às portas da Europa (nos campos da Turquia), dos quais 3,7 milhões são de origem síria e 400 mil são solicitantes de asilo e, destes, 27,9% são menores.
Se até há bem pouco tempo o tráfico de seres humanos se debruçou maioritariamente sobre a exploração para fins sexuais, na sua grande maioria de mulheres, neste momento o “negócio” transnacional do tráfico vai muito além desse tipo de exploração, envolvendo cada vez mais o grupo vulnerável de crianças.
Não é por mero acaso que na Convenção da UNODC contra o Crime Organizado Transnacional decorrida em 2004 em Viena e, no preâmbulo ao relatório que daí resultou – UNITED NATIONS CONVENTION AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME AND THE PROTOCOLS THERETO –, o então secretário geral das Nações Unidas Kofi Annan enfatizou o aumento deste tipo de crime sobre dois grupos de enorme vulnerabilidade: as mulheres e as crianças.
A dificuldade nas travessias e deslocação, a inexistência de corredores legais de migração e sobretudo a ausência duma política europeia comum de imigração fomentam e alimentam estas redes.
As organizações internacionais da área da migração têm pois, vindo a debruçar-se cada vez mais sobre a utilização de crianças e menores por estas redes. Um estudo levado a cabo no ano passado pela OIM, e que deu origem ao relatório Fatal Journeys – Missing Children, vem pôr a nu uma realidade que incomoda, que nos arrepia, mas que não podemos ignorar: há crianças a serem vendidas para as práticas mais ignóbeis. Crianças vendidas para adoção ilegal, para fins sexuais, para remoção de órgãos, para trabalho escravo. Os “mercados” são sobretudo os países ditos civilizados: a Europa e os Estados Unidos da América à cabeça!
Ao longo da movimentação desde os países de origem até ao destino, milhares de crianças acabam por ser separadas do seu entorno familiar, seja porque se perdem, seja porque são pura e simplesmente roubadas à familia, seja porque esta acaba por não sobreviver às condições da viagem, seja até porque são vendidas pelos próprios familiares muitas vezes para financiar o trajeto dos restantes. Esta é uma triste e desumana realidade que temos que olhar de frente, por muito que nos incomode.
Portugal, embora não sendo ao que tudo indica um país de destino deste tipo de tráfico (à exceção de algum tráfico para exploração laboral, embora os casos revelados apontem mais para um tipo de crime de auxilio à imigração ilegal e exploração do que claramente tráfico), é um país de trânsito destas práticas. Como o são, aliás, todos os países com fronteiras externas da União Europeia.
Até ao momento, a prática tem sido reativa: identificar o crime, proteger as vítimas e penalizar os infratores. No entanto, estes últimos são apenas o elo final duma cadeia muito mais vasta e organizada.
É do conhecimento de qualquer criminologista que todo o crime, e sobretudo o transnacional, tem que ser combatido a montante. Isto implica agir sobre as condições que propiciam este negócio. Trata-se duma questão meramente mercantilista por mais que isso nos perturbe. Há procura e há “material” e condições para a oferta. E é, aqui, na oferta, que teremos que agir!
Estabelecer corredores de migração legal, envidar esforços de cooperação real com os países de origem, promover a troca de informações entre os órgãos de policia criminal de todos os países, estabelecer critérios claros e efetivos de atuação comum, definir quadros penais transnacionais, promover uma proteção internacional das vítimas, são algumas das práticas que têm que ser estabelecidas para o combate efetivo a esta calamidade.
Enquanto houver uma atuação baseada no “cada um por si” e nos apoios e subvenções aliadas a este combate, estaremos, não apenas a perder a guerra contra o desumanismo, como a ser coniventes e parte integrante do mesmo.
É para refletir sobre estas questões que existe o Dia Internacional de Luta Contra o Tráfico de Seres Humanos. Mas é sobretudo para exigir aos decisores que, duma vez por todas, deixem de fazer projetos de gabinete e ajam, de facto, no terreno.