Floyd morreu e o mundo, de repente, apercebeu-se que sufocava.
Não é o primeiro negro a ser morto nos Estados Unidos da América, vítima de um excesso de força policial. E certamento, e infelizmente, que não será o último. Não fossem as imagens captadas e divulgadas seria mais um crime que passaria despercebido no grande buraco das estatísticas.
Mais do que um problema de racismo, creio estarmos perante algo bem pior: o da intolerência em relação aos outros, aliada a um abuso de autoridade. Nesta perspetiva, os Estados Unidos da América não estão sós e os movimentos autoritários, falsamente justificado pela necessária securitização duma sociedade mais heterogénia e volátil, vêm ganhando espaço.
Não pode haver qualquer tipo de tolerância relativamente a estes atos de excesso de violência. E não, não é a mesma coisa quando estamos perante a violência exercida por cidadãos comuns e por cidadãos que envergam uma farda. Ambos são condenáveis, note-se. Mas, aos últimos, exigisse-lhes uma contenção e uma avaliação dos factos, que lhes permite exercer a força na justa medida do ilícito cometido
O resultado deste tipo de atuação é que a mesma acaba por atingir toda a floresta, devido a meia dúzia de árvores podres. Meia dúzia que vem aumentando a cada dia que passa, mas que não pode ser confundida com o todo.
O assassinato em plena luz do dia que ocorreu nos EUA não é único nem exclusivo daquele país. Ele ocorre um pouco por toda a parte e tem duas vertentes, quanto a mim, preocupantes: por um lado, uma cultura do exercício excessivo da força perante toda e qualquer suspeita de atropelo à Lei. Não nos esqueçamos que Floyd foi morto porque, supostamente, ter falsificado uma nota de 20 dolares. Noutros casos (apelo aqui a um exercício de memória recente), nem sequer chegamos a saber as razões reais. Por outro lado, a impunidade concedida pelo poder em vigor – que ou tarda em reagir ou age como se nada se tivesse passado, contando com a espuma dos dias e com a avalanche incessante de notícias frescas, para obliterar a memória dos cidadãos.
Na América isso já não funciona, uma vez que os casos se sucedem e está ainda muito presente na memória de todos a célebre Marcha sobre Washington pela Liberdade e Direitos Civis dos anos 60 do século passado.
Por cá, achamos que o racismo não existe e, como tal, somos bastante permissivos e tendemos a relativizar, e até a rapidamente esquecer, situações de atropelo aos direitos e dignidade humanos, sejam elas mais ou menos graves.
Racismo não tem a ver apenas com a cor da pele, e isso é algo que ainda não interiorizamos. Racismo tem a ver com etnocentrismo, com a falsa permissa da supremacia da minha cultura, da minha forma de ver o mundo, da minha posição social sobre os demais.
Se calhar, não lhe deveríamos chamar racismo. Prepotência, intolerância, chamemos-lhe o que quisermos. O significado não altera o significante.
Não pode haver qualquer tipo de tolerância relativamente a estes atos de excesso de violência. E não, não é a mesma coisa quando estamos perante a violência exercida por cidadãos comuns e por cidadãos que envergam uma farda. Ambos são condenáveis, note-se. Mas, aos últimos, exigisse-lhes uma contenção e uma avaliação dos factos, que lhes permite exercer a força na justa medida do ilícito cometido. É para isso que são treinados, é por isso que confiamos neles. Caso contrário, podemos chegar a um ponto de nos perguntarmos: quem nos protege da polícia?
Já agora, sejamos um pouco mais humildes e arrumemos primeiro a nossa casa, antes de atirarmos pedras ao vizinho. O que aconteceu nos EUA foi hediondo e as repercussões também são condenáveis. Mas… E por cá?
O mal do nosso povo é ter uma memória muito curta. Isso é um dos fatores que premeia a impunidade em que continuamos a viver e que nos amordaça aos tais brandos costumes, que funcionam apenas numa direção: a do mais fraco.