
O mundo como o conhecemos foi-se embora, em desordem, e nós não conseguimos encontrar autoridade para o mandar voltar para trás e pô-lo de novo nos eixos. Dia após dia, semana após semana, à fadiga junta-se fadiga, à coragem junta-se coragem. Estou a pensar sobretudo naqueles que trabalham na frente de batalha hospitalar.
No outro dia, a minha amiga Sandra, enfermeira que trabalha na ala de cuidados intensivos reservada aos doentes infetados pelo novo coronavírus de um hospital de Lisboa, enviou-me uma foto sua coberta da cabeça aos pés por material de fibra plástica, equipada como se fosse apanhar o primeiro foguetão para Marte. Com a sua coragem e a sua sólida bondade, ela está impedida de revelar aos doentes com quem lida todos os dias o seu lado mais humano, simplesmente porque nem sequer pode mostrar o rosto.
Mas a minha amiga Sandra, tal como tantos outros profissionais de saúde, não deixa que o cansaço corroa a vontade. Não é humanismo que lhe falta. No cenário dramático reservado aos infetados por Covid-19, ela está impossibilitada de comunicar com os seus pacientes com o que tem de mais seu: os olhos, o nariz, a boca, os seus traços identitários principais, onde se desenham alegrias e tristezas, sorrisos pacificadores, olhares generosos, tudo o que é bom e faz falta para ajudar a enfrentar o medo.
Nem imagino o que seja. A maioria dos infetados encontra-se apavorada, sem saber se resiste, impedida de receber visitas, mais vulnerável do que nunca. E, no entanto, vive cercada por esta espécie de seres extraterrestres, como a minha amiga Sandra. Há uma impenetrável distância, como se os médicos e enfermeiros fossem entidades difusas, como que filtradas, protegidas por detrás dos fatos, máscaras e viseiras.
Foi por sentir como pode ser duro somar ao isolamento sanitário este outro, mais subjetivo, mas não menos desolador, que no Sharon Hospital, em Israel, as equipas médicas e de enfermagem tiveram uma ideia: para que os seus doentes os pudessem conhecer, colaram uma fotografia sua aos fatos de protecção. Uma ternura que não tiveram vergonha de demonstrar. Foi como reencontrar o caminho do afecto. Para os doentes que precisam de um abraço, com o desespero de um náufrago, estas fotografias com os rostos das pessoas que tratam deles são a metáfora perfeita do bote salva-vidas.
A ternura é um raio que nos atinge sem esperarmos e que nos marca. Gestos que rapidamente vão abrindo espaço para o inesperado, a surpresa, a humanidade.
As soluções mais simples são, por vezes, as mais poderosas. Como por magia, este gesto humanizou toda a unidade de infectados do Sharon Hospital. Foi um descobrimento luminoso. O que fez a diferença, mais do que a fotografia, foi a vontade de a partilhar. O profundo gesto de amor que se revela no meio do caos.
Depois de retirar o fato de astronauta que veste no hospital, com a fadiga a sair por todos os poros, a minha amiga Sandra volta para casa de coração apertado, com um fardo de histórias e casos trágicos para contar, cansada como uma moura, mas impaciente para regressar no dia seguinte. A sua vida tem um propósito e um ideal claro. A sua missão no mundo é fundamental. Agora só falta colar a sua fotografia ao fato de astronauta, para que os seus doentes a conheçam a sorrir. Como eu.