Começo no ponto em que acabei o editorial da semana passada: quando, daqui a uns anos, se fizer a história destes tempos, haverá com certeza quem se questione sobre como se cometeram tantos erros e tão básicos. É que são muitos, são crassos, são sucessivos e são dolorosos de se ver.
Um destes erros políticos é o confrangedor convite a Lula da Silva para participar nas cerimónias do 25 de Abril. Um erro com pai e mãe – a Presidência da República e o Governo. Vamos por partes. Na tomada de posse do Presidente brasileiro, a 1 de janeiro, disse Marcelo Rebelo de Sousa: “Foi marcado já o que vai ser o encontro, em Portugal, de 22 a 25 de abril, com a cimeira entre o Presidente Lula e o primeiro-ministro português e a visita de Estado, a meu convite, que culmina na participação na cerimónia do 25 de Abril.” Uma ideia peregrina que surgiu no meio do entusiasmo incontido com o desfecho das eleições brasileiras e a derrota de Jair Bolsonaro, que pouco antes tinha feito a desfeita de deixar pendurado o Presidente da República português. Fast-forward a 23 de fevereiro, e o ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, anuncia, em Brasília, que Lula vai discursar no Parlamento, na sessão comemorativa do 25 de Abril, numa claríssima ingerência na esfera institucional da Assembleia. Ato contínuo, começam a chover críticas, e Augusto Santos Silva recorda que é o Presidente da Assembleia que define a agenda.
A vinda de Lula nesta data já era, só por si, uma ideia disparatada, por várias ordens de razões. Desde sempre que o 25 de Abril é uma data propícia a entrincheiramentos, tal como o 25 de Novembro. Há quem queira ser seu dono e há quem se lhe oponha; há divisões, querelas e permanentes contestações. O 25 de Abril, como a data que pôs fim a uma ditadura de 41 anos, não pode ter donos nem detratores… tem de ser de todos. Tal como se tem de valorizar o 25 de Novembro como data essencial para a solidificação da democracia portuguesa. É fundamental não acentuar guerras intestinas e divisões infundadas entre esquerda e direita em torno destas datas, sobretudo em vésperas do cinquentenário da Revolução. E é de puro bom senso perceber que um convite a Lula da Silva para participar nesta ocasião é atirar combustível para esta fogueira, agravando o entrincheiramento. Se ao pé de Bolsonaro qualquer um parece um estadista, Lula tem um histórico complexo e é uma figura altamente divisiva, tanto no Brasil (como se viu com o resultado das eleições) como fora dele. Trazê-lo nesta data é importar para o nosso país essas divisões – tudo o que menos se quer. Afinal, alguém convidaria Bolsonaro para estar presente? O convite esdrúxulo é feito ao homem e não ao titular do cargo, como é bom de se ver.
Convite feito, lá se conseguiu uma solução diplomática para disfarçar o embaraço institucional, e os líderes parlamentares acordaram que Lula discursaria numa sessão de boas-vindas não integrada nas comemorações oficiais. Se assim já estaríamos mal, então conseguiu-se ir de mal a pior. Graças ao próprio, que proferiu nesta semana declarações inaceitáveis, a todos os níveis, a propósito da guerra na Ucrânia. É a realpolitik, dirão alguns. Afinal, está a zelar pelos seus interesses, a puxar pelo espaço económico dos BRICS e a procurar fazer negócios com a China e a Rússia. Mas é muito mais do que isso. Da forma como apelou à paz na China, mascarado de pomba branca, está a 1) desvalorizar as tentativas de pacificação feitas pela Europa e pelos seus líderes; 2) defender uma neutralidade que equipara agredido e agressor; 3) ingerir-se num conflito, colaborando com um criminoso de guerra; 4) replicar o argumentário colaboracionista com o Kremlin; 5) pôr-se ao lado de ditadores como Putin e Xi Jinping. Cereja no topo do bolo: recebe depois Sergei Lavrov em Brasília, para o convidar a visitar oficialmente Vladimir Putin em Moscovo.
Não sabemos o que dirá Lula da Silva quando discursar na Assembleia da República de um país da União Europeia, que ele vê como belicista e parte ativa no conflito. O mal está feito. As suas opiniões são livres, e não podemos misturar o país irmão, com uma História comum com Portugal, com o seu representante político. O Chega tem a vida facilitada e prepara-se para um show de contestação de taberna. Aos outros, em nome da decência, caberá engolir uma pomba viva com explosivos no bico para manter a compostura que lhes é devida. Noblesse oblige. Espero, ao menos, que os discursos marquem civilizadamente a posição nacional. E espero, sobretudo, que o embaraço deste 25 de Abril para esquecer sirva de lição.
OUTROS ARTIGOS DESTE AUTOR
+ Em busca da iniciativa perdida