Depois da sucessão de casos e casinhos, tropeções, erros e agonias, que a entrevista à VISÃO em meados de dezembro registou, António Costa procurou fazer um “ctrl + alt + delete”. Focou-se num “restart” em modo de emergência, e adotou uma estratégia de contenção de danos e recuperação da imagem e iniciativa perdidas. A entrevista à RTP, no final de janeiro, marcou o início desta tentativa de viragem. Compareceu então perante os portugueses um primeiro-ministro (PM) humilde e conciliador, num ato de contrição público que ficou para a posteridade: “O Governo pôs-se a jeito.”
Desde então, António Costa reaproximou-se da política interna, procurou meter ordem na casa e livrar-se de problemas. A demissão da administração da TAP por justa causa, mesmo que tal seja algo difícil de sustentar, foi uma dessas manobras de limpeza da casa e fuga em frente. A outra foi o questionário de 36 perguntas para candidatos ao Executivo, numa tentativa de evitar novos erros de casting e apaziguar desconfianças.
A segunda componente principal do novo plano estratégico de emergência do Governo foi a evidente procura da reconquista da iniciativa política. Por um lado, há uma tentativa de marcar a agenda com factos relevantes, por outro, um ensaio de endereçar os temas que preocupam os portugueses, com a concretização de iniciativas legislativas para fazer face à crise na habitação e à inflação.
Se, no primeiro caso, a subida contínua dos preços das casas e das taxas de juro fez disparar o sentido de urgência, no segundo, o valor do défice extraordinariamente baixo a anunciar – apenas 0,4% do PIB, muito abaixo dos 1,9% inscritos no Orçamento – obrigava a que a almofada fosse distribuída já. Perante tamanha folga, seria inaceitável que o Estado enchesse os bolsos, enquanto os portugueses apertam o cinto e agonizam. Em ambos os casos, as intenções são boas e há medidas interessantes. O problema, como quase sempre, está nos detalhes. E, tanto na habitação como na inflação, há uma componente panfletária nas medidas apresentadas que contamina ambos os pacotes.
Vamos por partes. Na Habitação, foi o próprio Presidente da República que se referiu ao pacote como lei-cartaz – aquele tipo de leis que são feitas para dar que falar mas não propriamente para cumprir. Há, parece-me, várias normas com eficácia – a limitação das rendas, os apoios e as bonificações dos juros nos créditos à habitação, a agilização dos licenciamentos, os incentivos fiscais à construção, o fim dos vistos gold. Mas uma das medidas infeta tudo o resto – a do arrendamento compulsivo dos prédios devolutos, que desde a primeira hora estava na cara que iria dar enorme polémica (só o PM não o viu e ficou perplexo, vide frase na página ao lado). Como já escrevi, é um erro político crasso, porque se trata de uma norma de aplicabilidade praticamente impossível, que mina a confiança dos agentes económicos na segurança jurídica e no respeito do Estado pela propriedade privada. As comparações com a lei de 2014, que já previa arrendamento compulsório, não colhem – o que existia antes era uma regra para uma situação-limite no caso da necessidade imperativa de obras coercivas, neste o Governo apresentou o quase-confisco de bens privados como instrumento de tapa buracos da sua própria inércia, em matéria de políticas de habitação pública.
Atentas as críticas, a norma foi encolhida – aplica-se apenas a apartamentos, devolutos há dois anos e em zonas de elevada densidade –, e a batata quente foi atirada para as autarquias. São elas que deverão identificar que casas devolutas existem e sobre quais querem lançar mão. Como, não se sabe bem. Seja o que Deus e os presidentes de Câmara quiserem.
Já o pacote da inflação, com boas medidas (o aumento adicional para funcionários públicos e o cheque de apoio às famílias mais vulneráveis), tem também a sua norma-cartaz: o IVA Zero. Depois de, durante meses, vários ministros do Governo terem explicado, tintim por tintim, porque é que esta é uma medida sem qualquer eficácia prática (“Uma opção de redução do IVA, por exemplo, dos produtos alimentares, não nos dava a garantia de que isso se traduzisse em alguma contenção do preço dos produtos alimentares, porque é um mercado muito livre, com operadores muito fortes”, Medina dixit em outubro), vêm agora tentar convencer-nos de que, afinal, pode ter efeitos benéficos e que estes não se ficarão pelas margens das distribuidoras, com quem se tenta um acordo agora. Factos, como o exemplo espanhol, estudos e opiniões de entidades independentes, como a UTAO ou o insuspeito presidente do Banco de Portugal, contrariam isso: a medida tem margem para correr mal, aplica-se tanto aos mais ricos como aos mais desfavorecidos, e não é por isso a maneira mais eficiente de apoiar quem mais precisa. Mas, no entanto, como “IVA Zero” soa bem ao ouvido dos incautos, aí está ela.
A busca pela iniciativa política perdida tem destas coisas: muita propaganda, pouca eficácia.
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