Só não vê quem não quer ver. O diagnóstico está feito e deu capa da VISÃO em dezembro: existe uma grave crise de habitação em Portugal. Em seis anos, o custo das casas subiu mais de 80%. Como contamos nesta semana, Lisboa lidera o ranking das dez cidades europeias mais caras em relação à média do seu país. Portugal é, na Europa, uma das regiões em que o valor do arrendamento mais aumentou desde 2015. 40% dos agregados habitacionais pagam rendas entre €650 e €1 000 por mês. Cenário agravado pelo facto de termos um dos mais baixos parques públicos de habitação da Europa: apenas 2% do total, longe dos 5% que o Governo traçou como meta para final desta legislatura e ainda mais longe dos 8% da média europeia.
Tudo isto são tendências que já se agravam há vários anos: não só o mercado sozinho não se ajustou, nem se autorregulou, como a situação se tem deteriorado. A oferta continuou baixa (nos últimos cinco anos, por cada dez casas vendidas construiu-se apenas uma), e a procura alta nas grandes cidades (com a ajuda extra dos alojamentos locais, vistos Gold e nómadas digitais). Tudo isto se traduz num esforço significativo para as famílias – e não apenas as mais carenciadas –, agravado pela inflação e o aumento das taxas de juro, que contribuíram para o desbaste das suas economias (taxa de poupança em mínimos históricos).
Perante este cenário, é evidente que ao Governo cabia agir. É o clássico caso de uma falha de mercado em que uma intervenção estatal é justificada – falha, aliás, que não é só nossa e que levou muitos outros países a fazer o mesmo, perante problemas semelhantes. A questão é que o mercado é intrincado e não se presta a soluções fáceis, indolores e muito menos de efeito imediato. E quando existem dois direitos em conflito, que têm de ser articulados – o da propriedade privada e o da habitação, ambos consagrados na Constituição –, estamos também perante um clássico terreno fértil para profundo confronto ideológico.
O programa apresentado por António Costa e pelos ministros da Habitação e das Finanças, que estará por um mês em consulta pública, tem pelo menos a benesse de querer ir à procura de respostas para os problemas concretos, com um pacote de medidas abrangentes. Há soluções interessantes e imediatas: o apoio ao pagamento dos juros de crédito à habitação das famílias com taxas de esforço elevadas e a limitação das rendas para novos contratos, por exemplo. Mas, no curto prazo, o pacote tem mais de foguetório e de intenções do que de medidas com efeito rápido na vida das pessoas. E levanta inúmeras questões de princípio que não são despiciendas.
Primeiro problema: há Estado a mais neste plano (é senhorio, fiador, credor, intermediário, cobrador, construtor), coisa que, imagine-se, até Mariana Mortágua sublinhou. E muitas destas medidas são de aplicação complexa e exigem uma máquina pública eficiente, para identificar, avaliar, processar e despachar as situações previstas, com agilidade e sem favorecimentos, além de uma boa articulação entre as autarquias e as instituições nacionais. Com o histórico que conhecemos, tudo coisas difíceis de acreditar…
Segundo problema: há ideias questionáveis, que abrem ruturas profundas na sociedade portuguesa. A polémica medida do arrendamento coercivo das casas devolutas é o exemplo mais flagrante. Levanta questões de constitucionalidade, e a doutrina divide-se nas respostas, muito conforme a sua orientação ideológica de base: há quem sublinhe que a lei já prevê situações em que o direito de propriedade cede perante o fim social da habitação, ou do interesse coletivo em certas situações, e há quem veja uma intromissão desproporcional e abusiva num dos mais estruturantes direitos fundamentais.
Para mim, a maior dúvida é, além de constitucional, sobretudo de ordem política. É uma incongruência gritante ver um Estado – que desvalorizou o problema, deixou crescer o monstro, não construiu parque público durante anos e nem sequer sabe que propriedades tem a seu cargo ou consegue fazer o devido uso das muitas centenas de imóveis que tutela – vir tentar colmatar, agora, a situação com recurso a bens dos privados. Se não consegue gerir o seu património, como vamos acreditar que gerirá melhor o alheio? Mais: esta medida tem uma carga intrusiva que atenta contra a confiança no Estado e que deixa marcas aos agentes privados. De aplicação dificílima, é sobretudo uma hostilização infrutífera e um erro estratégico: dá argumentos para a polarização, divide mais do que resolve. Vale a pena insistir nisto?
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