Enquanto o mundo se distrai com os microdetalhes dos cerimoniais, encenações e protocolos da sucessão na coroa britânica depois da morte da rainha Isabel II, na Ucrânia vivem-se horas decisivas. Longe dos noticiários e da opinião pública, as forças ucranianas conseguem uma das mais espetaculares contraofensivas desde a II Guerra Mundial, avançando no terreno a velocidade vertiginosa. A Ucrânia recuperou, numa semana, mais de cinco mil quilómetros quadrados no terreno, na região de Kharkiv – mais do que os russos conquistaram em cinco meses. Um feito notável.
Como disse Churchill num dos seus famosos discursos, em 1940, quando foi necessário reforçar o apoio a França na luta contra o nazismo, acontecem por estes dias as “finest hours” ucranianas. Momentos que podem ser determinantes para o futuro não só dos dois países em conflito como de toda a Europa e, mesmo, das democracias ocidentais e dos seus valores fundadores.
Não há, claro, favas contadas nem desfechos garantidos numa guerra. Mas há vários fatores que explicam e podem antecipar o resultado de um conflito. Normalmente, podem ser arrumados em sete parâmetros, que formam, em inglês, o acrónimo TELLMES. Em português, são eles o tempo, a economia, a logística, o terreno, o modo de combate, o ethos e a estratégia. Para Timothy Snyder, um dos mais proeminentes historiadores da Europa Central e de Leste, pesados todos eles, a Ucrânia leva vantagem.
A Rússia estava a apostar numa guerra rápida que acabou por se prolongar; a economia ucraniana tem o apoio do Ocidente quando a Rússia começa a sofrer o efeito das sanções; a logística e o terreno beneficiam o país invadido e penalizam o invasor; o modo de combate favorece quem tem armas de longo alcance como as que a Ucrânia recebeu; o ethos dos ucranianos é o de quem tem tudo a perder, enquanto o dos russos é o de quem não compreende bem por que razão está a lutar; a estratégia russa é desmantelada pela quebra da premissa inicial, de que os ucranianos “irmãos” se renderiam perante um “salvador” que viria desnazificar e desmilitarizar.
Os acontecimentos da última semana marcam a entrada numa nova fase da guerra. Com o inverno “amigo” à porta, Putin, com tropas deslaçadas e sem mobilização suficiente para manter o impulso a leste e avançar decisivamente para forçar uma rendição, aposta no impacto do corte de energia nas economias europeias. Joga tudo na escalada da inflação, no abrandamento económico e, sobretudo, na pressão de uma opinião pública pouco disponível para sofrer, que começa a pesar os custos da defesa da soberania e da liberdade ucranianas perante os incómodos que já sente diariamente no bolso. A injeção de confiança destes avanços anima as tropas ucranianas, mobiliza as populações a resistir e, mais importante, mostra como o apoio do Ocidente – que fornece armas e dinheiro – é determinante. E isso dá novos argumentos aos governos para continuar a apoiar a Ucrânia até que esta consiga um cessar-fogo satisfatório.
O maior risco para os ucranianos é a desmobilização do suporte internacional. É o esquecimento, a falta de fé, o desejo de resolver um problema que parece eternizar-se. Tal como em 1940, em causa não está apenas a soberania de um país – está a defesa da liberdade, dos valores democráticos e do direito internacional público. Putin, tirano exemplar para outros tiranetes espalhados pelo mundo, não pode ganhar. Por isso, estas horas decisivas são também nossas.