Isaiah Berlin chamou-lhe o “Complexo de Cinderela”. “Existe um sapato – a palavra ‘populismo’ – para o qual em algum lugar deve existir um pé. Existem todos os tipos de pés que quase se encaixam, mas não devemos ficar presos por esses pés que quase se encaixam. O príncipe está sempre vagueando com o sapato; e em algum lugar espera-o um membro chamado puro populismo. Este é o núcleo do populismo, a sua essência. Todos os outros populismos são derivações dele, desvios e variantes”, escreveu o filósofo e historiador em 1967, dando conta da dificuldade de encontrar uma só formulação para o conceito que não é novo, nem exclusivo de uma ala política ou região do mundo. Parafraseando Tolstoi na primeira frase de romance mais célebre de todos os tempos (em Anna Karenina), todos os políticos sérios são iguais, os políticos populistas são-no cada um à sua maneira.
Populistas há muitos, da esquerda à direita: dos narodniks socialistas agrários russos aos primeiros regimes populistas da história na América Latina – os nacionalistas Juan Perón na Argentina e Getúlio Vargas no Brasil; de Hugo Chávez e Evo Morales a Le Pen, Modi, Trump, Orbán ou Bolsonaro.
Mais do que uma ideologia, o populismo é uma estratégia, uma fórmula oportunista de manipulação de massas para chegar ao poder, sendo os conceitos ideológicos não um fim, mas um meio para lá chegar, como explica José Pedro Zúquete em Populismo Lá Fora e Cá Dentro. E por isso, muitas vezes, instrumentais e voláteis.
Há, no entanto, traços comuns que nos dão pistas. O mais definidor é a exploração da clivagem entre “nós”, o povo, do qual o populista é pertença e porta-voz, e “eles”, as elites políticas que dominam o statu quo. “Salus populi suprema lex esto”, ou “que a salvação do povo seja a lei suprema”, inscreveu Jean-Marie Le Pen em 1988 nos valores da Frente Nacional francesa, citando Cícero. Outro traço característico é uma espécie de sebastianismo assente no líder “salvador”, que vem dizer as verdades contra os poderes instalados. Estes fazem também sempre parte da cartilha do populista: todos são “do contra” e exacerbam os podres do sistema, as oligarquias e os casos que podem passar de caos, numa crítica permanente às democracias contemporâneas liberais. Os populistas vendem-se como os únicos capazes de resolver este “caos” que identificam e propalam, e propõem soluções fáceis e rápidas para problemas complexos, num exercício de simplificação que descamba quase sempre na mentira.
Todas estas características encontramos, como é bom de ver, bem espelhadas em André Ventura e no “seu” Chega. Mas também, entende Zúquete, é possível identificar traços populistas em Sidónio Pais (“Isto agora é dos homens de bem. Não há partidos. Há uma revolução triunfante e uma pátria a refazer”, terá dito), e mesmo em Humberto Delgado (“Sou a voz que se ergue sem medo, ao serviço da vontade popular, para proclamar o que todos pensam”), em Spínola ou Otelo Saraiva de Carvalho.
De quando em vez, os populistas chegam ao poder. E este alegado excecionalismo, quando posto à prova, resulta, mais tarde ou mais cedo, em acidente. O populismo é como um comboio sem travões destinado a descarrilar. O populista acabará por sair-se mal, seja pela via do colapso, ou da institucionalização – o oposto do que se propunha inicialmente.
Os últimos anos trouxeram uma vaga populista pródiga em exemplos de descarrilamento. Vimos como descambou Donald Trump, que culminou nas loucas alegações de fraude eleitoral e no assalto ao Capitólio, como vai Bolsonaro e as ameaças estilo “depois de mim o caos”, e como está agora de saída Boris Johnson.
Boris sempre foi errático, impetuoso, excêntrico, superficial, traços de carácter aos quais ele somou um populismo que a erudição não apagou. Foi a sua mensagem simplista e a voragem pró-Leave que atiraram os conservadores para um populismo radical que resultou num Brexit caótico. Sai agora pela porta pequena, por causa de abusos e festas, com uma debandada geral da sua equipa. É, “finalmente”, a “queda de um palhaço”, titulou a The Economist. “Todos veem o que pareces, poucos sabem o que és”, ensinava Maquiavel. Mas, mais tarde ou mais cedo, fica à vista.