Um cabide de metal, uma mãe ensanguentada. Aí está ela outra vez, a imagem que virou símbolo do aborto ilegal nos Estados Unidos da América. Como todas as imagens-símbolo, é eficaz porque não é apenas uma metáfora. Transporta-nos, sobretudo a nós mulheres, para uma realidade muito concreta que não queremos sequer imaginar: uma gravidez indesejada, uma vida em suspenso e um desespero tão terminal que se arrisca enfiar, pelo colo do útero adentro, a ponta de um cabide, uma agulha de croché, uma ferramenta afiada, um utensílio de cozinha, uma garrafa de vidro. Quando se conseguia rasgar as entranhas e retirar o feto sem que se instalasse uma perigosa hemorragia, ficava concluída a missão. Muitas vezes, as mulheres davam entrada no hospital ainda com os cabides entre as pernas. Já da dor de alma, da culpa, da angústia, da vergonha – dessas, dizem as mulheres que passaram por isso, nunca mais se livrariam. Isto, claro, as que tinham a sorte de sobreviver.
Era assim que se interrompiam gravidezes nos Estados Unidos da América. Era assim que se abortava em Portugal até 2007 e é assim que se continua a abortar em todo o mundo onde os direitos das mulheres ainda são desprezados. Agora, a decisão do Supremo Tribunal norte-americano (que ganhou, em novembro, uma composição maioritariamente conservadora) veio colocar 64 milhões de mulheres em idade reprodutiva numa condição frágil – a de não terem a garantia legal que o caso Roe vs. Wade lhes concedeu há cinco décadas de poder dispor do seu corpo, até às 23 semanas de gravidez, e tomar decisões para as suas vidas com dignidade e segurança. Estão dependentes das legislações aprovadas nos seus estados e em pelo menos 16 passará a ser ilegal.
Os EUA juntam-se assim ao pequeno grupo de países que, nos últimos anos, restringiu as leis do aborto, ou seja, a Polónia, a Nicarágua e El Salvador. Segundo o Centro para os Direitos Reprodutivos, 59 nações fizeram o caminho contrário. O impacto desta decisão deverá, porém, ir mais longe do que a falta de assistência médica: a criminalização trará perseguições às mulheres que abortaram (por violência fetal ou homicídio), e mesmo vidas em risco em caso de complicações na saúde dos fetos ou das mães, como nas gravidezes ectópicas ou não evolutivas.
De imediato, como numa distopia de ficção estilo Handmaid’s Tale, as mulheres começaram a preparar-se para os novos tempos sinistros que se abateram sobre a América. A compra de pílulas do dia seguinte e abortivas disparou, milhares de apps de acompanhamento da menstruação foram apagadas, redes de apoio informal ao aborto ilegal entraram em ação. Nas redes sociais, muitas mulheres que vivem em estados onde o aborto continua permitido disponibilizaram as suas casas para acolher outras dos estados onde o aborto passou, literalmente de um dia para o outro, a ser proibido. Foram convocados protestos e manifestações – oxalá, elas não se calarão.
As mulheres mais impactadas serão, como sempre, as mais pobres – as que não conseguem viajar para os estados onde é legal. Os números mostram que são as classes mais desfavorecidas as que mais abortam – 75% estão abaixo ou perto do limiar da pobreza. Muitas não brancas e ainda estigmatizadas, sem seguros de saúde, com trabalhos precários. E os números mostram também que os abortos não deixam de ser feitos – passam é a implicar mais mortes, mais complicações de saúde, mais traumas. Sobre isso, os grupos pró-vida conservadores não se pronunciam. Ironicamente, são os mesmos conservadores que, nos EUA, são contra os subsídios para despesas com saúde e contraceção, creches e licenças de maternidade, já para não falar das restrições à venda generalizada de armas que tantas vítimas causa.
No Brasil, onde a extrema-direita de Bolsonaro continua a impor a sua agenda religiosa, uma menina de 11 anos que foi violada viu negado o pedido de aborto por uma juíza de Santa Catarina, que a incentivou a desistir apesar da lei o prever. A menina acabou por consegui-lo semanas mais tarde, e já aos sete meses de gestação, noutra unidade de saúde. Foi também esta semana colocado em audiência pública um novo “manual antiaborto” com o nome “Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento”, criado pelo Ministério da Saúde, que contém informações falsas e onde se diz que “todo o aborto é crime”.
Moral da história: as escolhas políticas importam. EUA e Brasil são dois bons exemplos de como um voto no populismo tem, quase sempre, consequências imprevisíveis e disruptivas e acarreta riscos de brutais retrocessos civilizacionais. Sejam agora bem-vindos e, sobretudo, bem-vindas às trevas.