Mais uma volta, mais uma viagem. Esta semana, na Hungria, o ultranacionalista Viktor Orbán assumiu o quarto mandato consecutivo à frente do governo, com uma vitória por maioria absoluta. Esmagadora, mas polémica. Desde 2020 que a Hungria deixou de ser qualificada como um país livre pela Freedom House e passou a ser um regime híbrido, espelhando o caminho de declínio democrático que o país vive na última década. A Hungria, note-se, sofreu a maior deterioração já medida pela organização no seu relatório regional Nations in Transit, sobre democracia na Europa e Eurásia.
As liberdades no mundo estão em declínio há mais de 15 anos, e a Hungria é um dos melhores exemplos de como as instituições democráticas podem ser capturadas por dentro. Como é que isto aconteceu? De forma mais ou menos encapotada, Orbán foi interferindo em cada uma das quatro áreas fundamentais – sistema judicial, sistema eleitoral, comunidade civil e média – e minando a sua independência. Com muita propaganda, propostas populistas e soluções simplistas para problemas complexos e inimigos escolhidos para polarizar e direcionar as culpas e os ódios (os migrantes, Soros ou a União Europeia), o líder do Fidesz foi conseguindo avançar no sentido do iliberalismo com apoio popular. Como mostra a História, não foi o primeiro nem será, com certeza, o último autocrata a fazê-lo.
Várias mudanças legais permitiram assegurar um controlo das instituições independentes húngaras, e foram instituídas normas contra a liberdade de expressão que dificultam a atuação de oposição, órgãos de comunicação social, universidades e organizações não governamentais. Com pezinhos de lã, foi montando uma autocracia cada vez menos soft. É assim, caro leitor, que morrem as democracias…
O que nos importa isto, pensarão alguns. Importa muito para todos os europeus. Ele está no meio de nós. E a Guerra da Ucrânia veio escancarar um problema que vem de trás: o que fazer com um autocrata dentro das fronteiras da União Europeia?
A União Europeia teve formas distintas, e titubeantes, de lidar com o elefante no meio da sala. Primeiro, fingiu que não estava a ver e foi encolhendo os ombros. Depois, tentou conciliar interesses e levá-lo a bem (lembram-se da visita de António Costa a Budapeste no verão de 2020, quando defendeu que Estado de direito não deve ser critério para fundos europeus?). Algumas vozes começaram, entretanto, a levantar-se e seguiram-se ameaças mais ou menos veladas de consequências. “Temos de defender os nossos valores”, deixou no ar Von der Leyen em junho passado. Agora, a paciência esgotou-se. Talvez no pior momento possível.
No dia 27 de abril, Bruxelas enviou finalmente a notificação formal com a ativação do mecanismo legal de condicionalidade contra a Hungria, que limita as transferências dos fundos ao cumprimento das regras do Estado de Direito. Alega Bruxelas que o governo húngaro tem falhado sistematicamente com obrigações de transparência, e que não existe uma estratégia de luta contra a corrupção nem auditorias que vigiem as crescentes irregularidades nos contratos públicos, algo que “afeta diretamente os interesses financeiros da União Europeia”.
O timing não é o ideal para um braço de ferro, é certo. Enquanto, depois da invasão russa, a Polónia desfez o bloco desalinhado que formava com a Hungria, colocando-se na frente contra Putin, Orbán continua, ainda que de forma menos inflamada na sua defesa, a fazer valer as ligações próximas ao Kremlin (e à China). A adoção de sanções contra a Rússia implica uma tomada de decisão por unanimidade no Conselho, e Orbán pode vetá-las durante a maior crise de segurança europeia desde a Segunda Guerra Mundial. Para que lado vai pender, é imprevisível. O passo seguinte seria suspender os direitos de voto da Hungria, como estabelece o artigo 7º do Tratado, algo que exigiria idêntica unanimidade.
Se o momento é mau, a verdade é que é a coisa certa a fazer. Tal como Putin não pode sair vencedor da estratégia de agressão, porque isso daria margem para prosseguir com ela, a Hungria não pode continuar a minar a UE por dentro. Os direitos e princípios fundamentais europeus são a cola que nos une, e se não os fazemos valer não faz sentido estarmos juntos.