Em dezembro do ano passado, Anne Applebaum, a consagrada jornalista e escritora premiada com um Pulitzer, assinou uma capa da revista Atlantic que titulava: “Os ‘maus’ estão a ganhar”. Na imagem, Putin e a trupe de autocratas: Xi Jinping, Lukashenko, Erdogan, Maduro. A sua tese era a de que o século XX tinha sido a história do progresso lento e desigual em direção à vitória da democracia liberal sobre outras ideologias – comunismo, fascismo, nacionalismo – e o século XXI estava a ser, até ao momento, uma história do inverso. Os regimes autocratas e os seus cleptocratas avançavam e ganhavam terreno no mundo, através de ramificações não só políticas mas também económicas e digitais. Mal sabia ela como, poucos dias depois, os factos confirmariam a sua tese com uma invasão da Ucrânia pela Rússia.
O mundo mudou no dia 24 de fevereiro de 2022, dando razão a Applebaum e a todos os que olhavam com preocupação para este avanço iliberal. Com elevada probabilidade, a data entrará para a História como o acontecimento mais disruptivo a seguir à queda do Muro de Berlim, em 1989, e aos ataques às Torres Gémeas, em 2001. Francis Fukuyama, que em 1992 anteviu um romântico “fim da História” com a pacificação europeia e a consagração da democracia liberal como solução de felicidade eterna para os povos, veio agora dizer, num ensaio no Financial Times, que o mundo se depara com o bombardeamento dos fundamentos democráticos. Mais do que movimentos, revoltas ou contestações que espelham uma política de identidade e/ou de ressentimento, vivemos um acontecimento que vira tudo do avesso: estamos, pois, oficialmente, perante o fim do “fim da História”.
Segundo a Freedom House, a liberdade global cai há 16 anos consecutivos, num planeta onde o autoritarismo, e as suas ramificações populistas e correntes de extrema-direita, estão de novo a avançar. Tomando o exemplo da bravura dos ucranianos na luta pela sua autodeterminação e democracia, Fukuyama advoga um regresso ao “espírito de 89”. O que importa perceber é que mundo sairá daqui adiante, nesta versão acelerada da História que vivemos hoje, em que tudo acontece a um ritmo vertiginoso e em “real time”.
Putin conta uma história de infância aos seus mais próximos sobre quando era miúdo e se divertia a caçar ratos numa Leningrado destruída. Certo dia, a perseguir uma ratazana grande, ela sentiu-se encurralada num canto e atacou-o, algo que lhe ficou para sempre na memória. Doravante, os seus avanços contra inimigos teriam de ser calculados, e não apenas aventureirismos. Pegando na lenda, temos de saber quem é que será este animal acossado no canto: nós, o Ocidente liberal e democrático, ou Vladimir Putin e os seus amigos autocratas?
A resposta surpreendentemente unida, rápida e eficaz do Ocidente pode virar a mesa. Em escassos dias, Putin transformou-se num pária, o inimigo público global número um. A Rússia ultrapassou, em larga escala, o Irão como país mais sancionado do mundo, rompendo até neutralidades históricas como a da Suíça. A NATO pode sair disto reforçada, quem sabe até com a adesão das neutras Suécia e Finlândia. A União Europeia começou um caminho irreversível de militarização, unificação e fortalecimento, e tem de pensar num plano de defesa comum (que até pode beber aos ideais da Comunidade de Defesa Europeia, que chegou a estar no papel em 1952 e a França boicotou) e de alternativas ao erro geoestratégico que cometeu na dependência da energia russa.
Na Rússia, os efeitos já se sentem, e de que maneira. Reservas monetárias congeladas (580 mil milhões de euros, cerca de 40% da economia russa, inacessíveis), transferências bancárias fora do sistema Swift, oligarcas com bens confiscados, subida em flecha do rublo e da inflação interna, grandes marcas e empresas fora do país, Facebook, Twitter e outras redes sociais fechadas, novas leis que restringem ainda mais a liberdade de expressão e de Imprensa. Segundo a ONU, mais de 12 700 manifestantes já foram detidos.
O descontentamento será cada vez mais difícil de conter. Catapultado pelo movimento antiguerra, o desejo de liberdade e de democracia pode tornar-se irreprimível. Imparável.
Do lado do Ocidente, será o momento da verdade. Temos de manter a racionalidade, mas não podemos ceder perante uma ameaça global. Como dizia Applebaum, se não travarmos “os maus” lá fora, eles em breve virão confrontar-nos nas nossas fronteiras. E “os maus” não podem ganhar.