Para quem gosta de ver a democracia a funcionar, o fim de semana passado foi memorável. Teve de tudo: lutas renhidas, guerras intestinas, surpresas, assombro.
No PSD, as eleições diretas de sábado mostraram que não há favas contadas quando os militantes vão a votos: bem se pode ter o aparelho e os barões consigo, como tinha Paulo Rangel, que de nada vale se as bases estiverem voltadas para o outro lado, de olhos postos no poder a acenar ali adiante. O outro lado aqui era Rui Rio, o homem que, após quatro anos de liderança fraca e errática, foi agora bafejado por dois fatores essenciais: 1. O timing de ter as eleições legislativas à porta, para as quais um novo líder teria mais dificuldade de posicionar-se 2. As sondagens, quando, por enorme ironia do destino, o político que mais vociferou contra elas em Portugal sai beneficiado de pelo menos duas que o davam como favorito na corrida a primeiro-ministro, tanto entre os eleitores gerais como entre os simpatizantes do PSD.
Um Rio seco de afluentes, que é como quem diz de apoios das estruturas e do aparelho, lá seguiu viagem no seu caudal, com a ajuda dos pingos da chuva. Não sabemos de que lhe servirão estas gotas de água na hora de se defrontar com os rivais, de ambos os lados, a 30 de janeiro, mas o líder do PSD sai galvanizado e com novo élan. Aliás, como o próprio disse, é “picado” que ele funciona melhor, e nós nunca o vimos tão ativo. A estratégia, essa é que não muda: quer uma “nova maioria sem linhas vermelhas”, assente no diálogo “à esquerda ou à direita”. Ao centro admite viabilizar um governo do PS e fazer um acordo a dois anos, e à direita apenas recusa claramente uma coligação com o Chega. Outras paredes intransponíveis ou cercas higiénicas, sublinhe-se, não as colocou. É que há muitas maneiras de se estabelecer acordos de incidência parlamentar e entendimentos sem um acordo formal, em que um governo é constituído por ministros de vários partidos. Rui Rio, o homem que ficará para a História da democracia portuguesa como aquele que trouxe a extrema-direita radical para entendimentos de governação (nos Açores), nem depois de traído, como o foi, disse até agora que não volta a repetir o namoro. Soma, pois, ao erro estratégico inicial a incapacidade de aprender com os erros.
Do lado do Chega, o IV Congresso teve o que é costume: o espetáculo de um partido de um só homem, o apelo ao nacionalismo, conservadorismo e autoritarismo, além do disparo em todas as direções, mas sobretudo na do PSD. E, neste feroz tiro ao boneco laranja de Rui Rio, como se não bastasse André Ventura já lhe roubar o eleitorado, ainda lhe rouba a figura fundadora do partido. Pobre do democrata Sá Carneiro é sempre chamado à baila: diz Ventura que “nunca se vendeu ao socialismo nem à extrema-esquerda” e que ele “estaria hoje orgulhoso” do Chega. Usada a palavra de Sá Carneiro em vão, soma-se a tirada da figura de Salazar, para aquecer os ânimos: vivas a “Deus, Pátria e família”, aos quais somou o “trabalho”. “Isso não é ser fascista, é ser português de bem”, esclareceu.
Para o reforçado Rui Rio, tudo isto pode ser mais um, o enésimo, sinal de alarme face ao perigo que o ameaça à sua direita e que o aconselha a uma recusa absoluta de quaisquer acordos, entendimentos ou conversas com o Chega. Imagine-se juntar, hoje, numa sala, o ditador bafiento Salazar com Sá Carneiro, a consciência crítica, o liberal, o humanista do PSD, para se conciliarem em matérias essenciais. Há pontos de contacto impossíveis quando os interlocutores são de outros planetas. E é por isso que a linha vermelha PSD-Chega tem de estar claramente demarcada. Trata-se de estratégia eleitoral, mas, sobretudo, de princípios ideológicos e de valores fundamentais.