O tema dos apoios sociais conseguiu um raro pleno: fazer com que todos os órgãos de soberania saíssem mal na fotografia. Ficou mal a Assembleia da República, porque aprovou três normas que violam a lei-travão constante na Constituição e que impede a aprovação pela oposição de aumentos de custos ou diminuição de receitas. Ficou mal o Presidente da República, porque as promulgou sabendo que eram inconstitucionais e contra o que tinha argumentado antes, quando vetou o diploma do alargamento do layoff simplificado aos sócios-gerentes. Ficou mal o Governo, porque recusa medidas necessárias e comportáveis nesta execução orçamental.
Enquanto Marcelo Rebelo de Sousa quer chutar o tema para trás das costas, o Governo esforça-se por justificar o que é difícil de legitimar. António Costa foi pelo caminho formal. Carregado de razão jurídica e munido da opinião dos muitos especialistas que, em coro, explicaram que a aprovação dos três diplomas era inconstitucional, veio a terreiro explicar que, por uma questão de princípio, não podia aceitar que esta prática se tornasse hábito. Perante a lei, está certíssimo. Um governo que vê aprovado um orçamento na Assembleia deve saber com que linhas se pode cozer, e quanto terá a haver e quanto pode gastar. A lei-travão visa exatamente evitar uma espécie de golpe de Estado orçamental.
Sou, é verdade, por princípio, muito sensível a argumentos de princípio. Só me custa mais a entendê-los quando defendemos a primazia dos princípios às segundas, quartas e sextas mas às terças, quintas e aos fins de semana encontramos formas de os enfiar na gaveta. E a verdade é que o Governo encaixou no orçamento suplementar o alargamento do layoff simplificado que a oposição aprovou e que Marcelo Rebelo de Sousa então vetou – usando o mesmo argumento jurídico que agora rejeita –, e que tem agora também folga orçamental para o fazer. Primeiro, porque tem andado a gerir a crise com demasiada parcimónia nas despesas – somos o terceiro país da UE que menos gastou no combate à crise pandémica e económica, e depois porque insiste na velha técnica a la Centeno de aprovar orçamentos com despesas que depois não executa na totalidade. As medidas agora aprovadas valem 250 milhões de euros, apenas 0,1% do PIB. Muito menos do que o que estava em causa no layoff simplificado (1 400 milhões de euros), ou o rombo que seria a contagem do tempo integral das carreiras dos professores, que ascenderia a um aumento permanente de custos de 800 milhões por ano, se se incluíssem as carreiras especiais.
Os argumentos formais tendem a ser de fraca qualidade em tempos excecionais como os que vivemos. Quando direitos, liberdades e garantias estão suspensos, quando o País agoniza com uma crise dolorosos, quando há milhares de trabalhadores independentes e famílias com apoios tão baixos, uma fundamentação formal tende a ceder perante a argumentação política. Ou moral. Como dizia Malraux, não se faz política com a moral, mas também não se faz mais sem ela.
Mas pior do que ouvir António Costa falar habilmente de princípios formais, foi ouvir os seus ministros falar no concreto. É pior a emenda do que o soneto. “Não foi por falta de disponibilidade orçamental que o Governo deixou de dar apoios. Sempre dissemos que não vamos a todo o lado”, esclareceu Siza Vieira na audição conjunta do ministro da Economia e da ministra do Trabalho sobre a resposta económica e social à pandemia. Uns dias antes, Ana Mendes Godinho dissera que os apoios sociais promulgados pelo Presidente têm “efeito perverso e injusto” porque indexa o apoio ao valor da faturação do trabalhador e não ao rendimento relevante para a Segurança Social. Estamos a falar de pouco mais do que pensões de sobrevivência, durante um período de pandemia… Perverso e injusto é deixar estas pessoas com apoios de 200 e 300 euros.
Não se trata de crise política, porque ela não interessa a ninguém nesta fase. Basta ver as taxas de aprovação dos partidos e a desgraça em que está a oposição. Uma crise política só vai acontecer quando António Costa perceber que pode forçar eleições e sair com maioria absoluta. Trata-se só de finca-pés, tropeços e uma questão de prioridades.
(Opinião publicada na VISÃO 1466 de 8 de abril)