Foi com pasmo e horror que o mundo assistiu à invasão do Capitólio que se seguiu ao incitamento à insurreição do Presidente dos Estados Unidos da América. Este momento juntou-se a outros dois estruturais que, de imediato, se anunciaram como agentes de mudança do rumo da História: a eleição de Trump e o ataque às Torres Gémeas no 11 de Setembro de 2001.
Há um antes e um depois deste ataque à casa da democracia norte-americana – para a democracia, para o mundo e para as big techs. Desde 2016 que as regras democráticas são testadas e levadas ao limite. Desta vez, ultrapassaram-se todas as linhas vermelhas e a democracia esteve mesmo sob assalto. E se os invasores eram um grupo bastante lamentável para wannabe de revolucionários, a verdade é que o objetivo destes apoiantes pró-Trump era claro – impedir o normal desenrolar do processo eleitoral e a confirmação de Joe Biden como Presidente. E isso tem um nome: sublevação. Incitada por clara sedição do Chefe de Estado em funções.
A democracia reagiu, é verdade. Os republicanos que até agora fecharam os olhos a tudo começaram a saltar do barco. Os democratas da Câmara do Congresso pediram a destituição através da 25ª Emenda e os do Senado abriram o processo legal para iniciar um impeachment. Trump poderia ser o primeiro Presidente da História dos EUA alvo de dois processos, o que condiz bem com a marca da desgraça que deixa no país e no mundo: a da normalização do que antes era inaceitável e impronunciável. Aconteça o que acontecer, do legado final de Trump fica claro que as palavras e os tweets têm consequências. E que o clima de crispação, ódio e revolta não se fica apenas pelo mundo virtual das redes sociais: salta cá para fora, contagia o mundo físico e a vida real, com resultados potencialmente devastadores. Tudo isto foi um rude golpe para os trumpistas de trazer por casa espalhados pelo mundo.
Porém, uma das mais importantes consequências foi a intervenção e assunção de responsabilidades que se seguiu por parte das empresas tecnológicas, como bem notou o comissário europeu Thierry Breton num artigo no Politico. Trump foi bloqueado do Twitter, Facebook e YouTube, e as suas contas e vídeos apagados, tal como foram retiradas das lojas de aplicações as redes alternativas como o Parler. O Presidente dos EUA é considerado capaz para deter os códigos nucleares, mas não para se comportar nas redes onde qualquer criança com 14 anos pode ter uma conta.
Até agora, as big techs escudavam-se atrás da legislação norte-americana que escusa de responsabilidades os intermediários dos conteúdos perante ilegalidades cometidas pelos seus utilizadores (a célebre secção 230). As redes se transformaram num repositório e numa incubadora de ameaças, grupos criminosos, atos ilícitos, e todas as intervenções de limpeza e manutenção da civilidade das big techs eram assumidas como benevolência mais do que dever. E se eram lestas em bloquear anónimos por violar as normas e mostrarem mamilos e conteúdos considerados impróprios, mantinham-se fora da política escudando-se na liberdade de opinião e expressão. A partir de agora, tudo mudou. As plataformas viraram publishers e assim abriu-se a caixa de Pandora: todos os chefes de Estado espalhados pelo mundo podem vir a ser unilateralmente, sem regras deontológicas claras nem processo judicial ou direito de defesa, bloqueados e impedidos de comunicar com as pessoas que, apesar de tudo, os elegeram. E isso não deixa de ser tão ou mais assustador do que um Presidente louco e perigoso à solta. As redes sociais são hoje uma espécie de Frankensteins: monstros poderosos criados pelo Homem que não sabemos bem como controlar. Deixá-los à solta pode ser muito perigoso, mas dar-lhes poder de decisão discricionária para censurar pode ser ainda mais.