Estávamos na segunda metade da quente década de 80 quando Michael Lewis, acabadinho de sair da faculdade, foi trabalhar para o banco Salomon Brothers em Wall Street. Conta ele que, com 24 anos, fazia dinheiro a rodos – centenas de milhares de dólares – sem perceber praticamente nada de ações nem de obrigações. Três anos depois, fartou-se do palco de ganância e dinheiro fácil e demitiu-se, e foi para casa escrever um livro sobre tudo o que viu nos bastidores do maior “antro de vilões” do mundo. Foi assim que surgiu “Liar’s Pocker”, um livro de leitura obrigatória para quem quer perceber os meandros dos mercados financeiros, e que nasceu um dos melhores escritores de economia do mundo e um dos meus favoritos.
Entrevistei-o no final de 2014 (para o Expresso), e na altura contava-me que, depois de escrever aquele primeiro livro em que descrevia as loucuras de um boom nas bolsas, ficou à espera do grande tombo quando percebeu que as coisas não iam ficar mais sãs. Chegou, tão ingénuo!, a pensar que depois dos loucos anos 80, Wall Street ia regenerar-se. Só que, ao contrário, o mercado cresceu, as loucuras ficaram maiores e mais descontroladas, à margem de uma regulação que se limitava a limpar a neve das laterias enquanto a avalanche engrossava no meio da pista. Lewis passou de incrédulo a expectante. Aguardava uma coisa quase apocalíptica, um rombo final. Tinha a certeza, tão assustadoramente certa quantos os 10 dedos da sua mão, que Wall Street haveria de vir abaixo com estrondo. Não era possível que um castelo de cartas baseado em ganância e falta de escrúpulos continuasse em pé por muito tempo.
Esperou sentado – mais de 20 anos. E Wall Street acabou por vir mesmo abaixo com a crise do subprime, com tanto estrondo que as ondas de choque que se repercutiram pelo mundo inteiro e geraram a maior crise financeira desde a Grande Depressão. Lewis estava, claro, à espreita. Tinha descoberto em 2007 um grupo de investidores – ou seriam um bando de doidos varridos? – que contra tudo e contra todos, juravam a pés juntos que os mercados estavam assentes numa enorme mentira que escapava aos olhos de todos os polícias e da própria Reserva Federal norte-americana. Garantiam que um crash aconteceria assim que esta fraude no negócio das obrigações de dívida colaterizadas (CDO, Collaterized Debt Obligation) fosse descoberta, e queriam fazer dinheiro com isso apostando contra a saúde financeira do sistema e até da economia mundial. Para espanto de todos, estavam certos, tão certos quantos os 10 dedos das mãos de Lewis, que ele usou para contra a história no extraordinário “The Big Short” (“A Queda de Wall Street”, na edição portuguesa da Lua de Papel), com um enredo bom demais para ser verdade, mas que é pura realidade. O livro ficou 28 semanas na lista dos bestsellers do New York Times, e chegou há duas semanas ao cinema com o mesmo nome e um elenco de luxo: Brad Pitt, Steve Carell, Christian Bale, Ryan Gosling e Marisa Tomei, com realização de Adam McKay. Nomeado para cinco Oscares da Academia, é indiscutivelmente um dos grandes filmes do ano, obrigatório para quem quer perceber o que levou à crise.
Voltando a Lewis, o apocalipse higiénico que esperava voltou a desiludi-lo. Depois do tombo final, os mercados levantaram-se e seguiram no caminho da insanidade. O autor não poupa críticas aos reguladores e autoridades de supervisão. “Muitos destes problemas começaram exatamente com uma má regulação, quando se criam regras sem entender as consequências. E quando se criam regras, criam-se novas oportunidades para as pessoas as contornarem. Não tenho grande esperança numa resposta simples regulatória, nem acredito que as más práticas sejam simplesmente banidas. Há demasiado dinheiro a ser ganho”, afirma. A complexidade do sistema é o seu pior inimigo. “A complexidade não traz nenhum benefício. O que faz é criar uma vantagem para quem tem informação, e permite aos insiders esconder e fintar os outsiders. A complexidade é a nova forma de opacidade em Wall Street, a forma de disfarçar o que se passa de errado”, dizia-me. O perfeito antro para vilões. “É a natureza humana. A ganância está-nos nos genes. Pode-se fazer muita coisa, mas é impossível mudar a cabeça das pessoas.” À New York Magazine, disse recentemente: “As coisas importantes que poderiam tornar o sistema mais seguro não foram feitas. Mantém-se a receita para o desastre”.
Depois de escrever “A Queda de Wall Street” em 2010, Lewis voltou ao seu tema preferido em 2014 com “Flash Boys” (Lua de Papel), uma leitura alucinante que põe a nu a atividade de trading de alta frequência, que consiste na prática predatória levada a cabo por um grupo de pessoas da alta finança que tiram vantagem das redes eletrónicas complexas e adiantam-se às ordens de mercado, ganhando dinheiro em milissegundos com o pequeno spread entre a compra e a venda. Uma verdadeira “shitstorm” (tempestade de porcaria, numa tradução livre), como foi chamado na imprensa norte-americana, que despertou enorme discussão no mercado, mas que não surtiu no entanto grandes efeitos práticos. A podridão continua e continuará, até ao rombo seguinte.
O que nos leva ao protagonista do filme do momento. Michael Burry, que Lewis tão bem retratou em “A Queda de Wall Street” como o génio improvável com síndrome de Asperger que chefiava a Scion Asset Management e anteviu o colapso financeiro, disse em Dezembro à “New York Magazine” que antevê uma nova crise económica. “Estamos outra vez no mesmo sítio: a tentar estimular o crescimento através do dinheiro fácil. O mundo, a uma escala global, está a caminho de taxas de juro reais negativas e isso é tóxico. Estamos a criar enormes stresses no sistema, e qualquer falha sistémica vai certamente afetar a economia global”, afirmou assegurando que a dívida é o “absurdo” que mais o assusta. Agora, Burry investe apenas em água, essa commodity que é um bem escasso. Não quer nada com o sistema financeiro.
Tal como Lewis, aliás, que ficou rico com tantos bestsellers de economia. O seu conselho? “Investir em bens imobiliários – casas, terras. Não tenho nada aplicado em fundos, não entrego o meu dinheiro a gestores.” O mais longe possível do antro de vilões de Wall Street.