Querida avó,
Se fosse viva, Carmen Dolores faria hoje 97 anos. Partiu recentemente. Nessa altura não a recordámos no nosso “Diário”. Mas hoje, dia de aniversário, é um belo dia para falarmos dela. Não fôssemos nós festeiros.
Chegar praticamente aos 97 anos, com a alegria e a força de viver que a Carmen Dolores tinha, são razões para festejar.
A Cultura não ficou mais pobre com a sua partida. A vida é isto mesmo. A Cultura ficaria mais pobre se pessoas como Carmen Dolores não tivessem existido.
Estreou-se no Teatro em 1945, na companhia Os Comediantes de Lisboa. Passou pelo palco do Teatro Nacional D. Maria II, onde interpretou a peça Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett.
No cinema participou em filmes como A Mulher do Próximo ou Balada da Praia dos Cães.
Carmen Dolores entrou, também, em várias novelas, entre as quais se destacam Passerelle, A Banqueira do Povo ou A Lenda da Garça.
Em 2018 a atriz foi distinguida Grande Oficial da Ordem de Mérito. Recebeu o Prémio Carreira dois anos antes nos Prémios Sophia da Academia Portuguesa das Artes e Ciências Cinematográficas.
Muitos quiseram ser atores por verem o profissionalismo do seu trabalho, o amor e dedicação à arte.
Antes da pandemia, estive na Casa do Artista com a Manuela Maria e falámos ao telefone (em alta voz) com a Carmen Dolores. Jamais irei esquecer a conversa com a atriz, que acima de tudo era uma mulher discreta, reservada, de aparência conservadora (aristocrática), que falava num tom de voz ímpar, não fosse ela uma grande declamadora. Recordo-me de a ver no palco do Teatro Aberto. Quando subia ao palco, transformava-se por completo na personagem que lhe cabia desempenhar. Na vida, como no palco, entregava-se de corpo inteiro, uma garra e um entusiasmo como só os grandes atores conseguem fazê-lo.
Carmen Dolores, que nutria um carinho muito grande por Cascais e participou em várias produções do TEC – Teatro Experimental de Cascais, dirigidas e encenadas por Carlos Avilez – desde o dia 27 de março de 2021 (Dia Mundial do Teatro), passou a fazer parte da toponímia do concelho de Cascais. A Rua Carmen Dolores é no consenso geral uma justíssima homenagem de uma comunidade que – como o país – nunca a esquecerá. Podemos encontrar esta rua em Birre.
O pano do palco pode ter descido para Carmen Dolores. Mas depende de nós mantê-la viva nas nossas memórias.
Do tal telefonema, ainda quero partilhar contigo uma frase: “Sempre preferi papéis de mulheres perversas, bem diferentes da minha própria natureza”.
Este telefonema aconteceu pois, como sabes, gostaríamos muito de contar com o testemunho da Carmen Dolores para o site Retratos Contados. A Carmen retirou-se do palco alguns anos antes e não dava entrevistas.
A conversa não presencial, e não gravada, não foi uma entrevista.
Mas foi uma partilha de conhecimento que jamais irei esquecer.
Quando levas a 2º dose da vacina?
Cuida-te.
Bjs
Querido neto
Comecemos pelo fim: vou levar a 2ª dose da vacina no dia 10 de maio. Depois conto-te tudo.
Mas vamos lá à Carmen Dolores.
Como sabes, gosto sempre de recordar as pessoas em alegria. Não é “ai que pena, ficámos sem elas!”, mas sim “que bom que foi tê-las tido na nossa vida”. É sempre isso que eu digo dos meus dois maridos, dos meus amigos, das pessoas que foram importantes na minha vida.
E a Carmen foi uma dessas pessoas.
A primeira vez que a vi foi no Teatro Nacional, no Frei Luís de Sousa, teria eu uns sete ou oito anos.
Mas aí, desculpem lá, nem dei por ela. Aí, eu só tinha olhos e ouvidos para uma miúda, um pouco mais velha que eu – e que já andava pelo palco como eu adoraria andar também. Chamava-se Maria Dulce, e fazia da pequena Maria de Noronha. Sabia as suas falas todas. Também nunca perdi um espetáculo dela – e, mais tarde, ficámos amigas para o resto da vida.
Mas voltemos à Carmen – que, para lá de ter feito teatro radiofónico, programas de poesia, teatro, cinema, e televisão, também escreveu livros e gravou discos. E que teve a grande inteligência de ficar sempre perto da família (esteve sete anos em Paris a acompanhar o marido), e de saber retirar-se dos palcos quando achou que era a altura certa.
Não vou estar aqui a enumerar todas as peças que fez – acho que as vi todas e gostei de todas – mas aquelas que mais me tocaram, por motivos até um pouco palermas…
Em 1959 lembro-me de a ver numa peça chamada O Fim do Caminho. Não me lembro de nada, só sei que à saída havia livros à venda com a peça, que a comprei, que a sabia de cor e que cantava a canção com que ela acabava.
Depois fui vê-la em 1984 no Teatro Aberto, em Confissões Numa Esplanada de Verão, com Mário Viegas, Francisco Pestana e já não me lembro quem mais. A meio de uma cena, um dos atores dá um empurrão numa cadeira – e a cadeira cai com grande estrondo. Olham todos uns para os outros e ele lá vai pôr a cadeira no lugar. Seria mesmo da peça, ou teria acontecido por acaso?
E lá fui eu ver a peça outra vez. E a cena repetia-se. Pronto, era porque fazia mesmo parte da peça, olha que giro. Só muito mais tarde o Francisco Pestana me disse que não, mas como tinha resultado bem, tinham-na incluído.
No fim do ano seguinte, ela representava a peça Virgínia (sobre a vida de Virgínia Woolf) no Teatro Nacional. Eu tinha-me atrasado, vou hoje, vou amanhã – e de repente a peça estava no seu último dia. Só que o último dia era 31 de Dezembro. Saí do teatro eram onze e meia da noite. Vá lá que apanhei logo táxi, e eu só pedia “depressa, mais depressa!” porque estava a ver que ia perder a passagem de ano – com o marido e os filhos em casa à minha espera. O taxista parecia que voava. Passou sinais verdes, amarelos e vermelhos – e lá entrei em casa cinco minutos antes da festa. Acompanhada pelo taxista, que também bebeu uma taça de champanhe.
E a última peça que quero referir foi exatamente a peça em que ela se despediu dos palcos: Copenhague, em 2005, com Paulo Pires.
Acho que passei a peça toda de boca aberta. O texto era complicadíssimo (falava de física nuclear, nos tempos nazis na Alemanha), enorme, sem intervalo, e aquelas duas almas sempre em cena, a falarem, a falarem (sem ponto, evidentemente!) sem nunca se enganarem.
Lembro-me que, à saída, a maior parte do público também comentava o mesmo.
(E confesso que a minha admiração pelo Paulo Pires subiu em flecha.)
Em relação à Carmen, acho que foi uma retirada dos palcos em dignidade e beleza.
E pronto, agora que os café reabriram, vou para o café. Nem te digo quantos já bebi hoje…
Bjs
O Diário de uma Avó e de um Neto é um projeto do site Retratos Contados