Esta semana, o império Zuckerberg tremeu. Num reino digital onde não há coincidências, a crise no Facebook parece resultado de um algoritmo vingativo. No domingo, Frances Haugen – ex-funcionária da gigante tecnológica – deu a cara pela revelação de documentos internos da empresa aos media, deixando um alerta mundial: é urgente regular. Cabe à Democracia proteger-se de uma máquina titânica que ameaça destruí-la. No dia seguinte, um apagão levou abaixo as três aplicações do grupo – Facebook, Instagram, Whatsapp – que não funcionaram durante seis horas. Como num simulacro global de incêndio, a Humanidade testou reações ao desastre e provou uma amostra da sua dependência. Toxicodependência? Ao longo de seis horas, as famílias não falaram, as empresas não venderam, a informação não passou. O impacto económico atingiu os milhares de milhões de dólares. E se durasse um mês? Há muito para descobrir sobre os mais profundos meandros e efeitos das redes no mundo, contudo há ainda mais para fazer se queremos preservar a nossa saúde, a nossa paz.
O fenómeno das redes sociais está na berra, pelo modo como tem transfigurado a ordem e o comportamento humano. Ninguém questiona as vantagens trazidas pelo Facebook, pelo Instagram, pelo Whatsapp, pelo Twitter, mas o preço a pagar pelos serviços é alto demais. Desinformação, ódio, manipulação política, doença mental. A acumulação de poder e dinheiro destas organizações é historicamente inédita e a dimensão tecnológica, robótica, artificial, leva-nos facilmente para o plano da ficção científica. Há quem olhe para o fenómeno com a lupa conspiratória, pressentindo intenções maléficas na ação destas empresas. Não me parece. Falamos antes de uma cultura económica descontrolada, vazia de ética, que subjuga todos os valores ao do lucro. Por muito que custe acreditar, a violência, a polarização da opinião pública, a radicalização política e o declínio da saúde mental à escala mundial são aqui meras consequências do lucro de alguém. “That’s all, folks”. Seria engraçado que fosse a ação de um vilão vestido de latex, mas não é. Deixemos o Batman sossegado. Trata-se de uma questão de lei e direitos humanos, donde a resposta é mobilizar politicamente e regular.
Não faltam casos de ativistas perseguidos por regimes criminosos com a ajuda das plataformas. Laureada com o Nobel da Paz deste ano, Maria Ressa tem alertado para o perigo da disseminação do ódio e da desinformação nas redes. Sofre-o na pele. A jornalista filipino-americana é alvo constante de campanhas de ódio e tentativas de silenciamento por parte do governo filipino, como consequência do seu trabalho de investigação. Nas suas palavras, os algoritmos do Facebook “priorizam a disseminação de mentiras misturadas com raiva e ódio em detrimento dos factos”. O choque, a mentira, a conspiração e o escândalo geram mais cliques. Dão mais dinheiro. Conhecemos o efeito. Ao Facebook, devemos Trump e o Brexit. Ao Whatsapp, Modi, Bolsonaro, o crescimento do VOX. Ao Youtube, um oceano de vagas anticientíficas, negacionistas e conspiracionistas que corroem a coesão, a paz, a saúde. Ao Instagram, depressão, ansiedade, distúrbios alimentares. A todos eles, a desconfiança, a mentira, a erosão democrática. Em Portugal, há movimentos extremistas a crescer alegremente à sombra dos bytes. As gigantes tecnológicas já se comprometeram a agir para evitar isto.
Infelizmente, os documentos revelados por Frances Haugen provam que pouco tem sido feito. Pior: de acordo com os ficheiros publicados no Wall Street Journal, o Facebook tem, por exemplo, perfeito conhecimento do efeito nocivo na saúde mental dos seus 3 mil milhões de utilizadores, em especial das raparigas adolescentes, ou do uso da plataforma para promover violência étnica na Etiópia. No entanto, resiste às medidas que podiam evitá-lo. Tem as ferramentas para impedir a destruição, mas o lucro desmedido continua a falar mais alto. Chegou a hora de se fazerem ouvir os valores democráticos.
As prioridades são claras. Numa tentativa de desviar o debate, a demagogia tecnocapitalista tende a apresentar a questão como uma escolha entre a existência de redes sociais ou a sua eliminação. Logicamente, a escolha não é essa. Primeiro, porque já é quase impossível imaginar um mundo sem ferramentas digitais, sem comunicação instantânea, sem informação à distância de um clique. Segundo, porque não é necessário. É possível regular a estratégia comercial canibal e monopolista das gigantes tecnológicas. É possível fazer cumprir códigos de ética e deontologia. É possível responsabilizá-las pelos conteúdos difundidos. É possível limitar o extremismo, o conspiracionismo, a violência. É possível garantir que pagam impostos. Nada disso põe em causa a lucratividade ou a existência das redes. É uma questão de respeitar a nossa ideia de civilização.
Os nossos valores fundamentais não se submetem ao capitalismo selvagem, maquinal, explorador e desregulado. Aos governos e organismos, cabe regular com mão firme. Aos cidadãos, cabe a atenção e o envolvimento. Aos consumidores, dosear e escolher alternativas. O brevíssimo apagão da passada segunda-feira traz outro alerta: gerir a dependência excessiva dos meios digitais. Sem fundamentalismos, não esqueçamos o mundo real. Até porque como nos mostraram as ondas de calor deste verão, que bloquearam sistemas elétricos inteiros durante dias, um apagão a sério não é isto.
No The Guardian, Carole Cadwalladr prevê o “início do fim” de Zuckerberg – usando uma expressão que normalmente se aplica aos imperadores. Acho excessivo. Mark Zuckerberg não é o novo Gengis Khan. É um empresário e a lei também existe para regular as empresas.
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