Nunca o marasmo de agosto se conjugou com um tão grave desígnio nacional: a imunidade de grupo. À medida que a vacinação progride, o milagre da proteção contra o vírus – que não é milagre, é trabalho científico – dá confiança à viragem da página no discurso e na vida. Basta de covidiários. Pé ante pé, os portugueses experimentam as merecidas férias, ainda não plenas, mas já o suficiente para configurar a silly season. Portugal alcança a melhor prestação de sempre nos Jogos Olímpicos – dois bronzes, prata, ouro -, mas há quem, não querendo abdicar das medalhas na vitrine, se entretenha a avaliar a nacionalidade dos atletas. Há quem acredite que lhe cabe a si, bem recostado no sofá, conceder a nacionalidade aos outros.
Deixando as polémicas de balcão para quem as instrumentaliza, vou cingir-me ao fenómeno no abstrato. Até porque boa parte dos leitores precisa de férias das telenovelas urbanas. A discussão sobre atletas naturalizados portugueses angaria normalmente três tipos de reações: 1) os que aceitam a atribuição da nacionalidade portuguesa a pessoas nascidas noutro país porque se reveem no ideal de uma sociedade inclusiva; 2) os que não aceitam a naturalização, mas mudam de opinião quando Éder marca o golo contra a França no Europeu; 3) os que nunca aceitam, mas tampouco querem abdicar das medalhas, e que, portanto, contornam a questão alegando que o atleta “não é 100% português”. Por outras palavras, o vencedor é suficientemente português para conquistar a medalha pelo país, mas não o bastante para ser cidadão de primeira. O exemplo mais recente é Pedro Pichardo, naturalizado português em 2017 e agora campeão por Portugal no triplo salto em Tóquio.
Ser “100% português”, expressão que se vulgarizou nas redes sociais, pressupõe uma ideia de nacionalidade total. Considera necessariamente o vislumbre de uma nacionalidade parcial – o que não deixa de ser cómico. Como é que se quantifica a nacionalidade de alguém? Acreditar na existência de critérios físicos, étnicos e ancestrais para a nacionalidade portuguesa é, além de xenófobo, ignorante. Porquê? Porque até no plano identitário, a pluralidade é uma caraterística fundamental dos portugueses. Podemos não querer ver a diversidade como a riqueza que é, contudo a História não deixa dúvidas: a nossa matriz genética é um novelo de mistura e diversidade. Promover o mito do português “puro”, na acepção de uma espécie com determinada fisionomia, implica desconhecer a História do país, tão barbaramente como os Bárbaros que por cá passaram, não tanto como os Fenícios, Romanos, Visigodos, Árabes, Berberes, e todos os que se lhes seguiram com o arranque da globalização e dos impérios coloniais. Conforme li algures, Afonso Henriques era filho de um francês e de uma galega. Geneticamente, ou somos todos 100% portugueses, ou ninguém é 100% português.
Mas este rótulo do “100% português” – que calharia melhor a um melão do Algarve do que a um ser humano com nacionalidade portuguesa – não é distração, nem apenas ignorância. É racismo. Racismo do mais básico e medieval, daquele que alguns julgam extinto, assente na cor da pele, no cabelo, nas formas do rosto. E a prova disso é que não ser “100% português” pode ser um insulto ou um elogio, dependendo do nosso aspecto. Veja-se: quando me perguntam se sou “100% português” por não corresponder ao estereótipo étnico do português moreno, baixo e de barba rija, é normalmente num tom elogioso. Se não formos “100% portugueses” por termos, ou parecermos ter, sangue nórdico, é geralmente positivo. Quando dizem a um negro nascido em Portugal ou naturalizado português que não é “100% português” não estão a elogiá-lo. Estão a diminuí-lo. Em 2014, Nelson Évora foi impedido de entrar na discoteca Urban Beach, acompanhado de atletas de topo que representam Portugal internacionalmente, como Francis Obikwelu, Naide Gomes, Carla Tavares, Rasul Dabó e Susana Costa. Nunca tive esse problema. E uma sociedade evoluída, civilizada, do séc. XXI, não tolera a diminuição de ninguém pela sua origem étnica ou cultural.
No fundo, acredito que a maior parte de nós não caia na demagogia extremista, que tanto deturpa a História com mitos nebulosos e glórias de pastiche. De qualquer modo, para que esta minoria chauvinista não se melindre, proponho que os atletas passem a ter direito à nacionalidade num valor percentual correspondente ao resultado métrico das provas olímpicas. Pedro Pichardo trouxe o ouro para Portugal com um salto de 17,98 metros. Deve, portanto, ser considerado 17,98% português. Patrícia Mamona é 15,01% portuguesa, Auriol Dongmo é 19,34%, graças ao ouro no lançamento de peso em Torun, Nelson Évora é 17,67% português. Em última análise, seria um incentivo a que os atletas saltem sempre mais longe, lutando para quiçá um dia saltarem 100 metros e um qualquer internauta entediado lhes conceder finalmente os 100% da nacionalidade.
Os nossos campeões merecem melhor.
Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.