O descontrolo da situação pandémica em Odemira expôs uma realidade atroz em solo nacional: parte da nossa atividade agrícola é garantida por trabalhadores imigrantes em condições desumanas. Há muito se sabia, pouco ou nada se fez. Em pleno séc. XXI, 20 mil trabalhadores, sobretudo asiáticos, são trazidos por intermediários e acabam explorados nas verdes estufas do litoral alentejano, num dia-a-dia quase escravo, dormindo amontoados em casas, contentores, ou mesmo na rua. Logicamente, o contexto fez escalar os casos de covid-19 na região, motivando o cerco sanitário às freguesias de São Teotónio, Longueira-Almograve, e a requisição civil do complexo turístico Zmar para pôr as famílias a salvo. Escalou a polémica. Ao fim de décadas de queixas, alertas e reportagens sobre a vivência destes trabalhadores no nosso país, é triste que o tema mereça atenção a reboque da indignação de um conjunto de veraneantes em defesa do seu espaço de férias.
O litoral alentejano não é idílico para todos. A Polícia Judiciária tem investigações em curso há anos por suspeitas de escravatura, tráfico de seres humanos e auxílio à imigração neste nosso paraíso-de-alguns. A investigação decorre sobre empresas intermediárias que recrutam trabalhadores estrangeiros, principalmente do Bangladesh, da Tailândia e do Nepal, para laborar na agricultura a troco de salários miseráveis e condições infra-humanas. Infelizmente, sabemos que a situação não acaba em Odemira. Dos 32 inquéritos em curso do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, apenas seis dizem respeito ao concelho.
De acordo com a investigação, há redes criminosas que aliciam imigrantes asiáticos e norte-africanos em busca de uma vida melhor, para vir trabalhar na Europa – outro paraíso que ainda não está ao alcance de todos. A rede de exploração tem contornos que configuram os vértices obscuros de um esquema bem montado. Umas quantas empresas beneficiam de mão de obra quase-escrava, senhorios locais ganham com o aluguer das casas e a economia nacional coloca no mercado produtos baratos, que refletem práticas social e ambientalmente insustentáveis. Um circuito de exploração humanamente degradante, que acabará sempre tarde demais.
O eco-resort. Por muito que a história do Zmar suscite maior ou menor curiosidade, não faço dessa uma questão de relevo para a análise. O problema foi sempre, aliás, apontar o holofote mediático ao empreendimento, com entrevistas diárias aos proprietários de casas de férias, a meio de uma crise humanitária. É estranho. Se, ao que parece, há aspetos ligados à trajetória do empreendimento – dos fundos públicos à falência, do licenciamento às questões ecológicas – aqui, motiva-me mais o fenómeno social.
Num momento dramático para a saúde pública, de extrema sensibilidade humana, o Bastonário da Ordem dos Advogados, Luís Menezes Leitão, chegou a falar em violação dos direitos humanos, em defesa dos proprietários – quando a urgência ao nível dos direitos fundamentais estava do lado das populações em risco de vida, de quem já ninguém falava. O sensacionalismo mediático não ajudou, nem a gestão pública da situação. A comunicação do Governo foi desajeitada e pouco clara, ao determinar “a requisição temporária, por motivos de urgência e de interesse público e nacional”, da “totalidade dos imóveis e dos direitos a eles inerentes”. Rapidamente se concluiu que os trabalhadores e as famílias seriam colocados em segurança nas casas vazias do aldeamento, e não nas casas das pessoas, mas o estrago estava feito. Os ânimos acesos. A polémica ergueu-se em torno de nada, trazendo à tona declarações feias, indecentes e pouco humanas. Uma vez mais, os imigrantes desprotegidos, tratados em horário nobre com pouca dignidade e laivos de profundo racismo e xenofobia. Se, em vez de imigrantes asiáticos e pobres, tratássemos de albergar turistas ingleses num resort vazio, decerto o tom da discussão teria sido diferente. Mas não foi. As famílias acabaram por ocupar as casas vazias, com testes negativos, como aconteceu quando a Bélgica ou o Reino Unido requisitaram hotéis para o mesmo efeito. Infelizmente, o furacão mediático em torno do direito à propriedade contribuiu para que a prioridade central – salvar pessoas desprotegidas e pôr a comunidade a salvo – passasse para segundo plano.
O mal está feito, mas há muito para fazer. Antes de discutirmos o direito à propriedade – que não é absoluto, como vários países, insuspeitos de coletivismo ou comunismo radical, têm mostrado ao longo da pandemia – há a gravidade de um problema que ultrapassa o perigo do vírus. Se, perante os sucessivos alertas e denúncias, tem sido possível assobiar para o lado face ao tratamento desumano destas populações imigrantes no nosso país, o momento presente tem de servir para que se vire esta página. De uma vez por todas. Às autoridades competentes, como à comunidade, exige-se uma ação implacável na garantia dos direitos destas pessoas. Se tanto há quem se preocupe em exigir aos imigrantes que “respeitem a nossa cultura”, seria bom começarmos por garantir que a “nossa cultura” é respeitável.
Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.