Portugal segue na reabertura faseada, com 3,5 milhões de vacinas administradas e cautela. Infelizmente, o alívio nacional da situação pandémica não reflete a realidade mundial: várias nações atravessam situações de catástrofe, como a Índia ou o Brasil, e 14 países mantêm-se sem acesso a uma única vacina. Nos EUA, a NASA confirmou a veracidade de um conjunto de imagens, divulgadas na Internet, que mostram objetos voadores não identificados. Resta-nos esperar que sejam extraterrestres com vacinas.
Num campo de batalha paralelo, a luta em defesa da ciência segue fervorosa, contra a desinformação e o inabalável achismo. A primeira grande crise da era redes-sociais veio expor o quão essencial é separar a informação do joio. Se há maravilhas incontestáveis na democratização do acesso ao palco da comunicação, a criação de um espaço mediático aberto a todos – o online – deu azo a um oceano de confusão e fakenews, explorado por charlatães com agendas pessoais. As redes multiplicam-se em canais com vastas audiências, onde a verificação, o contraponto ou o escrutínio não existem. Obcecada com a popularidade, a sociedade contemporânea legitima pessoas em função do seu alcance mediático, permitindo que qualquer influencer ou youtuber tenha mais peso – e, até, mais credibilidade – do que um especialista, dentro de um assunto que não domina. Resultado? Muitas vezes aleatória, a popularidade dos novos comunicadores permite-lhes espalhar mensagens nocivas sobre, por exemplo, doenças ou vacinas, dificultando o trabalho das autoridades competentes. Recentemente, também não faltam exemplos na indústria do “aconselhamento financeiro”, com resultados catastróficos para a vida das pessoas. Para proteção da comunidade, é essencial recuperarmos os valores do conhecimento, da lógica e do mérito científico na esfera pública. Popularidade não é autoridade.
O apelo à autoridade para legitimar um argumento é um clássico. Em Filosofia, na escola, estudamos a falácia da falsa autoridade, que reside no apelo ao estatuto de alguém como tentativa de validar algo, quando o seu currículo é dúbio ou irrelevante para o caso. Exemplo: numa discussão sobre natação, Michael Phelps é uma autoridade como atleta de topo, mas isso não lhe garante credibilidade extra numa conversa sobre a AstraZeneca. Mais: se a discussão for em torno de factos, nem numa conversa sobre natação lhe vale a autoridade como campeão olímpico. Carl Sagan clamou a “desconfiança nos argumentos de autoridade” como um dos mais centrais “mandamentos” do processo científico. Ou seja, a comprovação dos factos é alheia à relevância do cientista ou da instituição. Lamentavelmente, testemunhamos falácias deste tipo todos os dias. A arquitetura dos sistemas de influência contribui para que a opinião de uma atriz muito conhecida, ou de um empresário de sucesso, sustentem credibilidade em matérias de facto onde a sua carreira, por mais admirável que seja, não tem o mínimo relevo naqueles casos.
Para além da recomendação de curas, métodos terapêuticos e práticas de saúde para evitar a covid-19, sem qualquer base ou fundamento científico – muitas delas diretamente prejudiciais à saúde – temos assistido a uma epidemia de Youtubers apanhados em flagrante a vender conselhos financeiros. Em março, foi lançada uma petição a pedir a investigação de vários Youtubers e celebridades da Internet, na sequência de uma denúncia de burlas e esquemas com pseudo-negócios. Entregue à Polícia Judiciária, a petição diz que as personagens em questão cultivam uma imagem de “sucesso”, ostentando carros e casas de luxo, e depois se aproveitam dessa plataforma de confiança para burlar as pessoas – em especial, os jovens – com promessas de dinheiro fácil. Ora, se o apuramento criminal está na alçada das entidades responsáveis – e esse veredicto não nos cabe a nós fazer -, há uma reflexão que se pode levantar já: independentemente de as burlas virem a ser comprovadas, o que levará tanta gente, num país estruturalmente pobre, a confiar dinheiro a pessoas de quem não se conhece qualquer currículo na área dos negócios, da economia ou das finanças? Num país com excelentes universidades e especialistas, com conhecimento gratuito ao alcance de todos, o que leva tanta gente a dar ouvidos a um jovem estranho, aos gritos para uma webcam no seu quarto, apenas porque se fotografa ao lado de um Lamborghini? É a falácia da falsa autoridade levada ao cúmulo, aliada ao desespero financeiro. Há casos incontáveis – e frequentemente silenciosos – de vidas arruinadas por estas burlas.
A cultura da imagem, em detrimento do conteúdo, alimenta este problema. Como os especialistas não têm, geralmente, tempo para se dedicar à otimização do seu Instagram ou canal de Youtube, e existe uma cultura de ponderação e discrição associada ao estudo, vemos frequentemente ecoar na opinião pública as teses de quem não tem habilitações para as expor. Vemos pessoas convidadas para falar à comunidade de temas que não dominam, por ostentarem mais ou falarem mais alto. Da saúde às dicas sobre finanças, parte-se do princípio inconsciente de que a pessoa, por ter muita audiência ou aparentar ter muito sucesso, é uma autoridade em qualquer assunto. E isso é perigoso.
Perigoso para todos. Precisamos de políticas de prevenção, reforço na educação, sensibilização para a avaliação das fontes e valorização pública do conhecimento. Precisamos de regulação das plataformas digitais. Precisamos de responsabilizar quem se aproveita dos mecanismos de influência para burlar em benefício próprio. Precisamos de combater o reflexo superficial de atribuir autoridade a quem ostenta uma vida de luxo. Lamento, mas exibir carros caros na Internet não pode conferir autoridade no que quer que seja. Se não o fazemos por nós, façamos pelas gerações vindouras. E se não o fazemos pelo futuro, façamos por respeito aos filósofos gregos, que decerto tremeriam ao saber que as velhas falácias que denunciaram há milénios estão tão atuais e de boa saúde.
Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.