Mais um Abril sem aquele abraço à sombra dos plátanos – esperamos bem que o último. Se, há um ano, ninguém acreditaria que a pandemia duraria tanto, as máscaras e os cravos saíram às avenidas, num exercício de equilíbrio entre a segurança e liberdade. Quem, outrora, lutou para resgatar o país das trevas conhece bem esse desafio. Todos os anos, o 25 de abril consegue superar-se na indispensabilidade de honrar o passado e iluminar o futuro. 2021 não foi exceção. O 25 de abril é, simultaneamente, a memória da resistência à ditadura e o sonho lindo para viver de José Mário Branco. Aconteceu e terá de continuar a acontecer. O Dia da Liberdade celebra-se pelos avós, pelos pais, pelos filhos e pelos netos.
Vivemos tempos duros e estamos exaustos, mas a democracia não está suspensa. Depois de, há um ano, em confinamento geral, não ter havido manifestação, neste domingo, milhares de pessoas saíram à rua, com as distâncias possíveis, para dar vivas à liberdade. Estive na Avenida da Liberdade e foi isso que vi: liberdade, consciência, emoção e segurança. As polémicas, que, por força dos tempos alterosos que atravessamos, se fizeram ouvir nas últimas semanas perdem força perante a realidade – que, no fundo, diz respeito ao que interessa: as pessoas. Num cenário fustigado pela profunda crise económico-social e ânimos submersos, a mobilização consciente de um povo em defesa da sua História, dos seus valores e dos seus direitos é encorajadora.
Para quem, como eu, recebeu dos avós a democracia à nascença, o 25 de abril é o dia ao qual mais devemos a vida que levamos hoje. Com a minha idade, o meu avô vivia num país obscuro e violento, profundamente pobre e desigual, fechado, corrupto, iletrado e tenebroso. Um país de pessoas boas e honestas, porém perseguidas e condenadas à pobreza por um cartel governante de vistas curtas. A ditadura não se resumiu à falta de liberdade de expressão, ou liberdade de imprensa, como às vezes parece retratada. Trata-se de uma realidade de miséria, subdesenvolvimento e desprezo pelos direitos humanos. No séc. XX, a Europa desenvolveu-se e cooperou, as democracias consolidaram os direitos fundamentais à paz, saúde, habitação, educação, cultura – em especial no pós-Segunda Guerra -, lançando o debate sobre temas civilizacionais como o racismo, a igualdade de género ou a liberdade sexual, e Portugal seguiu alheio ao mundo, mergulhado numa política repressiva e colonial, que condenou o país a um atraso pelo qual continuamos a pagar. O 25 de abril pôs fim a essa página infeliz da nossa História.
Por muito que uma minoria política populista e oportunista possa querer confundir as coisas, saudosa de um tempo que nem sequer viveu, os números são bastante claros. Os incontáveis testemunhos de quem, de facto, esteve lá, largos e bem documentados, também não deixam dúvidas. Quem viu crianças a andar descalças, a dividir uma sardinha por três irmãos, não tem dúvidas. Quem viu milhões de portugueses forçados a emigrar para os bairros de lata em França, não tem dúvidas. Quem contou dezenas de milhares de vítimas da Guerra Colonial, não tem dúvidas. Quem viu a força progressista do país perseguida, reprimida, a fugir à prisão e à tortura, não tem dúvidas. E se nem todos tiveram – como eu tive, sem nada fazer por ela – a sorte de ter herdado o testemunho das gerações passadas, não faltam factos e depoimentos.
Mas, como comecei por escrever, 25 de abril também é futuro. Apesar do assinalável progresso, o país conserva problemas profundos e requer reformas urgentes. A trajetória económica conturbada e a ineficácia estratégica têm frustrado o florescimento desta democracia. Portugal ainda é um país estruturalmente pobre. Um quinto das pessoas vive em situação da pobreza e um em cada três pobres trabalha a tempo inteiro. Portugal não cria condições para as famílias, não oferece oportunidades aos jovens e obriga os mais qualificados a emigrar. A proteção e os direitos laborais têm visto retrocessos. Há falta de apoio às empresas e de incentivo à criação de emprego. As áreas primordiais de interesse público, como a saúde, a educação, a segurança ou a cultura, são perpetuamente subfinanciadas, assim como a ciência, a investigação e a tecnologia –essenciais ao progresso e ao desenvolvimento sustentável. Os casos de corrupção corroem a confiança da comunidade nas instituições, minando a democracia e deixando-a à mercê dos extremistas. A pandemia e a crise mundial vieram agravar o panorama.
E só defendendo – individual, coletiva e politicamente – os valores da igualdade, da solidariedade, do humanismo, da diversidade e do progresso, contra quem os põe em causa, poderemos avançar neste caminho. Citando Sérgio Godinho no seu 50º ano de carreira, “só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação, saúde, educação”. Tal nunca será possível sem a coragem e os valores de abril.
“Coragem hoje, abraços amanhã” é uma homenagem às mulheres presas pela PIDE em Caxias e mote para o segundo 25 de abril em tempos de pandemia. E foi exatamente isso que se viveu neste domingo. Debaixo dos plátanos, com máscaras e atenções, vi quem telefonasse aos pais, quem filmasse para os avós, quem estivesse comovido com a esperança. Os abraços ficam para o ano.
Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.