Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
A duas semanas do final de um ano para esquecer, os portugueses dão corda aos sapatinhos na chaminé. Num ano normal, a febre natalícia mede-se pela lufa-lufa das ruas, pelo cintilar das luzes nas árvores, pela azáfama dos mercadinhos e pelo forrobodó do trânsito, que começa a notar-se logo a 15 de dezembro. Em 2020, não. 2020 ficará para história como o ano em que nem o Natal nos Hospitais acontece nos hospitais. Depois de um verão que lembrou o sudoku, com regras rigorosas e numéricas para distâncias e horários, chegou o Natal que lembra o mikado: despejam-se as varetas na mesa e cabe a cada português jogar com tato e precisão. Mais responsabilidade. No Natal 2020, amar um familiar é não lhe dar um abraço ou um beijo, e não haverá fiscais-de-linha. Está nas mãos de cada um. Se nunca nos vamos habituar à distância física dos nossos queridos, tudo indica que não será preciso. Este ano, é assim. Para o ano, celebramos a dobrar.
A seguir à notícia de que William Shakespeare recebeu a vacina contra a covid-19 – sem dúvida um dos melhores títulos que já li -, a conferência de imprensa de Rui Portugal, subdiretor-geral de Saúde, animou-nos um mês que se previa cinzento. A Direção-Geral de Saúde lançou 10 recomendações para uma quadra em segurança e o substituto de Graça Freitas comunicou-as aos portugueses, num momento muito engraçado, sem malícia e, portanto, ainda mais cómico. Num tom coloquial que fez as delícias da Internet, Rui Portugal sugeriu aos cidadãos que celebrassem o Natal “por meios digitais, por computador, por telefonemas, por visitas rápidas no quintal de uns e de outros, no patamar das escadas do prédio de uns e de outros”, recomendando “uma troca simbólica de uma compota que um fez ou de algo que seja aprazível” e a moderação no consumo de “substâncias que possam trazer maiores afetividades”. Delicioso. Não apenas pelo conteúdo, que é muito engraçado em si – basta ver que, pela primeira vez na História, se falou de compotas numa comunicação pretensamente séria -, mas pela forma – o estilo, o registo e o bigode clássico que toda a gente adorou neste subdiretor-geral. Não estando em causa a sua qualidade profissional e técnica, sólida e reconhecida, Rui Portugal é, hoje, o tio com o qual muitos portugueses passariam o Natal de bom grado.
Mas avancemos para o teor das recomendações. Independentemente de quem defende restrições mais dramáticas, as orientações da DGS para o Natal denotam, uma vez mais, um esforço democrático do governo. São o reflexo do respeito pelo árduo equilíbrio entre a prevenção do contágio e tudo o que é, em Portugal, igualmente indispensável à época: a família, o simbolismo, o amor, a intimidade. No término de um ano catastrófico, as pessoas estão mergulhadas em carências profundas, as proles em grandes dificuldades, o futuro cheira a queimado e só o contacto humano pode trazer alguma luz à nossa caverna escura. “Um contacto humano, um contacto de proximidade, mas com distanciamento físico”, ainda nas palavras de Rui Portugal. Para que tal seja possível, a mais alta autoridade de saúde do país recomenda: reduzir ao máximo todos os contactos antes e durante a temporada, usar espaços ao ar livre para encontros breves, reduzir aglomerados familiares, preferir contatos telefónicos e digitais, evitar cumprimentos tradicionais, não partilhar objetos e desinfetar superfícies. A quem estiver doente, é pedido que respeite o estipulado pelos médicos e haverá regras municipais para as deslocações. Em suma, a confiança é depositada nos portugueses, na sua inteligência e sensibilidade – e isso está em contraciclo com o autoritarismo de outros países, com necessidades diferentes. Para honrar esse esforço, teremos de provar que somos, todos, capazes de refletir a sensatez que nos é entregue, seguindo as diretivas escrupulosamente. De modo geral, temos provado merecer essa confiança. O desafio é grande, mas basta-nos estar, uma vez mais, à altura. Vamos ser capazes.
2020 é uma exceção a todos os níveis. À data da publicação desta crónica, o primeiro dia de Inverno coincide com um fenómeno astronómico raro: o alinhamento de Júpiter e Saturno, que nos permitirá ver, no manto negro do céu, uma espécie de Estrela de Belém, muito brilhante. A aproximação entre os dois maiores planetas do Sistema Solar foi observada, com esta magnitude, pela última vez na Idade Média, há quase 800 anos. Se o ano que termina veio deitar por terra a fé no horóscopo, este evento espacial deve servir como remate para um período em que tanto dependemos da Ciência. E redobrar o alerta para que levemos o rigor e o conhecimento a sério, já a partir de hoje.
Nesta época fatídica, respeitar a Ciência é seguir os cuidados à risca, como é, também, não deixarmos de nos ligarmos uns aos outros.
Feliz Natal.