Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
Terminada a semana-record dos números da pandemia, não deixa de ser simbólico que tanta gente tenha corrido à Nazaré para ver vagas gigantes. É um cenário cheio de sumo literário: massas de água colossais que se abatem com estrondo, o grave embate dos canhões nas falésias, a névoa salgada dos flocos de espuma e a multidão ao rubro. Aliviar o espírito da segunda vaga de covid com os olhos nas terceiras vagas da Nazaré é digno de uma metáfora apocalíptica. Ao longe, abafado pelo rugido dos vagalhões, ressoa o burburinho da fadiga política, da crise social, do caos nos hospitais, da precariedade aguda e da falência de empresas. Alerta tsunami.
A segunda investida da pandemia submergiu a Europa num mar morto. Quem visse João de Macedo, Nicolau von Rupp ou Lucas Chumbo a descer ondas gigantes na quinta-feira, rapidamente revia nessa bravura quase suicida o estado atual do nosso íntimo: fora de pé, cada um a vencer as vertigens à sua maneira. Independentemente da nossa crítica à gestão pública da pandemia, os líderes mundiais são, neste momento, surfistas involuntários de vagas abissais, forçados à coragem latejante de superar um desafio titânico e desigual. Com todos os erros imputáveis aos governantes, é humano termos essa noção. Na Europa, vários dos países mais desenvolvidos do mundo estão a perder a batalha para o vírus, afundados num pandemónio fatal que Portugal ainda desconhece.
Talvez porque a mortalidade covid tem estado, em comparação com países vizinhos, relativamente controlada por cá, ainda há imensos mal-entendidos sobre a doença. Num horizonte de equilíbrio quase-impossível (ou impossível, mesmo) entre o que é necessário para travar o contágio, prevenindo óbitos, e a responsabilidade de não afundarmos o país numa crise económica, social e de saúde mental sem paralelo, a opinião pública ferve com o medo, dilata com o cansaço e extrema-se. Na era das trincheiras facebookianas, abre-se uma fenda no espaço público entre quem acha que o vírus é uma gripezinha e quem crê que a solução é ficarmos todos em casa à espera que a coisa passe, dentro de um tupperware esterilizado. Estar no meio, em atualização conforme a realidade de cada semana, em ponderação constante, pesando as várias dimensões do problema, é um exercício mais raro. Precisamos, hoje, mais disso do que nunca.
A oscilação da opinião pública compreende-se. A comunicação na gestão da pandemia tem sido, demasiadas vezes, brusca, sensacionalista e pouco clara. Comunicação. O novo coronavírus ainda não tinha chegado ao País, já era notório o registo anticientífico e aterrorizador das notícias sobre o assunto. Notícias que pareciam boatos. Ainda a apresentadora de televisão Cristina Ferreira – eleita mulher mais influente de Portugal – se referia ao vírus como “vírus da China”, chegando a perguntar ao médico do seu programa “porque é que o vírus só afeta os chineses?”, obtendo como resposta que esse era “um tema de olhos rasgados”, já era evidente que o efeito da comunicação social no domínio público seria esse: instalar a confusão total. À barafunda juntou-se o alarme dos boletins ofuscantes, dos comentadores em êxtase, sem uma aposta séria e continuada na abordagem explicativa, pedagógica e digna, como seria desejável.
A nível institucional, a comunicação das medidas na gestão da crise também tem falhas sérias. Não alinho no discurso de que as autoridades dizem “tudo e o seu contrário”, por saber que a dúvida e a mudança de rumo são inerentes à ciência. A situação é nova, inédita e é natural que assim seja. Contudo, o esgotamento geral resulta do desgaste pelas guinadas impulsivas, da poeira das guerrilhas políticas, do massacre pelas sirenes da informação ao minuto, ao longo de oito meses. Ninguém aguenta tanto tempo em sentido, qual tigre de circo em duas patas, sem desalentar. Se hoje, como era previsível já em março para a segunda vaga, a escalada dos números e o colapso do Serviço Nacional de Saúde são uma realidade urgente, não foi sempre assim. Durante o verão, a comunicação berrante dos media, o Pedro a gritar “lobo” a cada caso positivo na aldeia, a pressão asfixiante sobre os pequenos negócios e o pavor injustificado, administrado às colheres de sopa, por vezes sob a leve suspeita de que não havia razão para tanto, corroeu parte da boa vontade das pessoas, nas semanas em que o contexto covidiano nos hospitais estava pacífico. Gastaram-se trunfos, esticando demais o discurso que já não volta ao formato que tinha, como um elástico. Depois disto, vai ser difícil reconquistar a dedicação das pessoas. Escrevi aqui várias vezes sobre isso. Como as escarpas da falésia que trava as ondas na Praia do Norte, o ânimo das pessoas estremece a cada vaga que sobre ele se abate. Mais do que nunca, há que tatear a exaustão coletiva com sensibilidade, clareza, e prevenir o desabamento.