Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
Na despedida de um agosto-vai-se-andando, as famílias preparam o regresso ao que quer que seja. Em Portugal, os números da peste mantêm-se controlados, a preocupação escala, todavia, com a ameaça do segundo tsunami. Há quem vaticine a catástrofe, há quem negue essa hipótese e há quem, como eu, não saiba onde deixou a sua bola de cristal. Uma coisa é certa: cinco meses passados do grande susto, impõe-se a visão aristotélica de que, na ponderação, está a virtude. O vírus é nefasto para o físico de alguns, destrutivo para o espírito de todos e é evidente, desde o início, o pendor de uma certa facção para o autoritarismo. Por vontade dessas almas, não se olha a meios para prevenir covides, algemam-se pessoas com nós nas máscaras se for preciso. Aqui, é essencial que não cheguemos à Madeira, ou aos Açores, neste caso, em especial num momento em que precisamos tanto de quem salvaguarde o verniz da democracia.
Esta semana recebemos uma notícia fantástica: encontraram, na ilha Terceira, uma peça de cerâmica com 2530 anos. A descoberta arqueológica dá força à teoria de que a presença humana nos Açores é muitíssimo anterior à chegada dos portugueses (em 1431) e isso vai contra a narrativa dos nossos livros de História. Fascinante, sem dúvida. Mas agora deixemos a matéria para o canal Odisseia. Se há quem ligue o artefacto à existência de uma cultura atlântica desconhecida na Idade do Ferro, cabe-nos tentar não voltar, hoje, à Idade da Pedra no que toca às liberdades fundamentais.
Açores, 2020. Desde março, contam-se casos de pessoas forçadas à quarentena, sem fazer teste. Reclusas, na chegada às ilhas. Depois de vários episódios semelhantes, o Tribunal Judicial da Comarca do arquipélago considerou, esta semana, que quatro turistas alemães haviam sido “privados da liberdade sucessivamente em duas unidades hoteleiras da ilha de São Miguel”, quando sujeitos à quarentena obrigatória. Em agosto, duas turistas espanholas – mãe e uma filha de nove anos – foram fechadas num hotel por indicação da Autoridade Regional de Saúde dos Açores, mesmo exibindo um teste negativo, com a justificação de que teriam viajado perto de alguém infectado, no avião, até serem libertadas por ordem do tribunal. Em finais de julho, o Tribunal Constitucional validou uma decisão que declarava a inconstitucionalidade do isolamento profilático obrigatório, sem estar comprovada a infecção. Ou seja, a intervenção dos tribunais foi necessária para impedir a clausura de pessoas num quarto de hotel, sem teste, sem nada, durante 14 dias. Alguém achou boa ideia submeter toda a gente a isso, fora do estado de emergência, com a situação Covid perfeitamente controlada, de tal modo está a lógica submersa em pânico. Felizmente, fez-se alguma luz.
O acórdão do Tribunal de Ponta Delgada deixa bem claro que, do ponto de vista jurídico, encerrar pessoas num quarto de hotel não é diferente de as fechar numa cadeia. No mesmo acórdão lê-se inclusive que um preso “tem mais conforto, melhores condições, sem dúvida, maior liberdade de circulação” do que os turistas confinados neste regime. Ou seja, antes ser preso. Eu acrescentaria, já agora, que os reclusos normalmente cometeram um crime e foram a tribunal. Há esse detalhezinho, também. Em maio, por ação dos tribunais, 350 pessoas foram libertadas nos Açores, nestas condições. 350 habeas corpus. O facto de que alguém teve de elucidar várias vezes um Governo Regional quanto a isto é, no mínimo, preocupante.
Mas a violação das liberdades básicas não se fica pelas ilhas, infelizmente. Com a desaustinação global, a pandemia trouxe um fenómeno estranho, em todo o País: um certo regozijo, da parte de uma minoria histérica, com as regras cegas, as regras que são regras, as regras que são regras e ponto final, desumanas, rígidas e inquestionáveis. Há, nalgumas pessoas que dizem “olhe que não pode tocar aí”, “olhe que não pode ir para aí” e “olhe que tem de ir para a fila”, um certo êxtase mal disfarçado, até, com isto das máscaras, do gel e da distância. Como há o fetiche da dominação, dos polícias ou dos fatos de látex, há um fetiche estranhíssimo, conservador e antiliberal, que condena a lógica e incentiva os caciques locais a agir com pulso firme, disfarçado de cuidado sanitário. Bem o temos visto. De Norte a Sul do País, surgem, desde março, autarcas com uma atitude autoritária e populista, vestindo a capa rota do Super Presidente, vedando acessos ao espaço público sem ter poder para tal, saltitando “além da DGS”, violando a Constituição como se a sua Câmara Municipal fosse o seu feudo. Não é aceitável, isto é um Estado de direito. Quem está convencido de que vale tudo na guerra contra a pandemia, desconvença-se. Não vale. A lógica é tudo o que nos pode salvar.
Num momento tão complexo, o maior desafio para a saúde pública é preservar a razão e a justiça. Ainda não chegámos aos Açores.