Crónicas d.C.Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
O calendário maia errou nas previsões. Em 2012, houve quem acreditasse que o fim do mundo chegaria em dezembro desse ano, mas sobrevivemos para contar a história. Hoje, percebemos que o início da nova era parece ter vindo num voo da TAP, atrasando-se oito anos. A tempestade é perfeita: pandemia, alvoroço global, 45ºC no Ártico, conflitos sociais, populismos baratos a abrir caminho e a crise económica a bater leve levemente, como quem chama por nós. É o Armageddon. Para piorar tudo, a histeria, a desinformação, os media a acicatar os ânimos, as pessoas naturalmente ao rubro, perdidas na gritaria, incapazes de pensar. Contudo, por muito que seja compreensível o pandemónio, é preciso, mais do que nunca, sensatez. O COVID-19 é uma questão seríssima e as regras de prevenção estão claras, mas temos de deixar de o tratar como se fosse o único e o mais grave dos nossos problemas. Não é. A crise social, económica e política que se avizinha será bastante mais mortal caso não entendamos isso a tempo.
Se o primeiro livro da J. K. Rowling saísse em 2020, chamar-se-ia Harry Potter e a Vacina Contra o Coronavírus. A busca de uma solução que trave a doença tornou-se de tal modo num desígnio global, partilhado por toda a Humanidade, que se diria ser tarefa de alquimista. O revés? Enquanto a Pedra Filosofal, segundo a lenda, permitiria aos magos destilar o remédio para todas as preocupações da espécie humana, imunizar as pessoas contra o COVID não permitirá muito mais do que voltar a poder ir trabalhar sem levar máscara no Metro. É duro. É duro constatar isto, mas é uma verdade essencial para compreendermos que morreremos de outras causas se só quisermos saber desta. Há poucas certezas em relação ao vírus, é verdade, mas há várias noutros campos: a degradação da saúde mental, o isolamento, a fome, a precariedade e o desemprego gerado pelo confinamento também matam. Enquanto os laboratórios se concentram na cura, será preciso respeitar estas certezas.
Mas voltemos atrás. Numa fase inicial, percebemos que o isolamento era o caminho a seguir, no sentido de “achatar a curva”. O cenário de catástrofe nos países mais atacados apontou uma evidência perante a qual ninguém hesitou: a mortalidade do vírus em Itália ou em Espanha deveu-se em grande parte à impreparação dos hospitais sobrelotados pelas urgentes marés de doentes. Defronte desta devastadora realidade, as autoridades científicas aconselharam os governos a tomar medidas de prevenção e assim foi. Em Portugal, houve quem ousasse a narrativa do “milagre português”, dado o modo como a situação foi controlada. Feitas as contas, os bravos lusitanos fecharam-se em casa, o vírus fez infelizmente vítimas, porém sem nunca sobrecarregar o Sistema Nacional de Saúde. Achatou-se a curva. De Norte a Sul do país, equipámo-nos o melhor possível e o resultado parece estar a ser, segundo os números, positivo, malgrado os sempre lamentáveis óbitos, no sentido de que em momento nenhum entrámos em espiral de catástrofe. Lá está: se o barómetro absoluto da existência fosse o número de infectados – como, aliás, os canais mais sensacionalistas da nossa praça parecem querer passar – as coisas não estariam más. Porém, tristemente, não é.
O confinamento generalizado trouxe problemas titânicos, um colapso económico que castrará o nosso futuro e um estado de implosão da saúde mental colectiva – problemas para os quais os especialistas alertam desde o primeiro momento, mas nada disso parece pesar tanto na opinião pública. O impacto do isolamento social nas pessoas mais pobres e vulneráveis não parece pesar tanto. O impacto do isolamento social no desenvolvimento psicossocial das crianças e jovens não parece pesar tanto. O desemprego, as falências das empresas, o fecho dos restaurantes ou o silenciamento corrosivo dos trabalhadores da cultura não parecem pesar tanto. Talvez seja um sintoma do pânico, a dispersão. Num momento em que o poder político tem entre mãos o encargo hercúleo de superar esta crise, é, porém, essencial que a comunidade seja capaz de pensar. As restrições não são propriamente complexas: máscara em locais fechados ou muito cheios, evitar o contacto físico que for evitável e lavar as mãos com frequência. Quem é mais frágil de saúde deve ser protegido, pois claro. De resto, temos de ir trabalhar ou morremos todos à fome. É excelente haver quem consegue trabalhar em casa, permanecendo em segurança, mas há, no resto do país e do mundo, uma maioria que morrerá se não correr o risco de ficar doente. Aliás, como acontece em relação a todos os outros perigos. O equilíbrio é fundamental. Quem acha que a solução é fechar toda a gente em casa indeterminadamente é tão inconsciente quanto quem está a tentar fingir que o vírus não existe.
Passando à acção, precisamos de líderes com coragem. Ao início, foi central passar consciência dos perigos da epidemia e agora é fulcral vestir essa consciência, seguindo em frente. Salvo raras excepções, as pessoas estão preparadas para se proteger e os espaços muitíssimo mais seguros e adaptados ao contexto. Os contágios estão sob controlo de acordo com os relatórios, mas agudizam-se urgências no plano social e económico que demandam coragem política. É natural haver medo, pânico e desespero, como é normal haver desvalorização e inconsciência. No fundo, precisamos de políticos com coragem para não ceder à pressão da opinião reinante. Precisamos que nos protejam, tanto de quem berra, como de quem assobia para o lado.