Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
Nem os dicionários estavam prontos para isto. Há um ano, escrever “desconfinamento” num teste de Português tirar-nos-ia pontos e os computadores ainda dão erro quando escrevemos a maldita palavra. Nos cafés, ouvimos trocadilhos de quem, à boa maneira portuguesa, tenta brincar com a catástrofe pedindo “desconfinados” com adoçante. Já pensaram? Um dia, os nossos filhos e netos abrirão o Priberam e sentiremos vontade de lhes contar que o termo “desconfinamento” não existia no nosso tempo, até que apareceu para aí uma virose terrível, e por aí fora. Ainda assim, a novidade da palavra não se estende às consequências do processo que designa: toda a gente sabia que tirar as pessoas de casa faria aumentar o número de casos. Era óbvio. No meio deste pântano, estamos todos exaustos com a histeria aguda de uns, com a irresponsabilidade grave de outros. Contudo, é essencial que sejamos críticos sem cair no ridículo de arranjar bodes expiatórios a cada semana, conforme sopram as notícias. Neste momento, precisamos mais do que nunca de nos compreendermos.
Agora a culpa é dos jovens. Nós, irresponsáveis, na flor na idade, vivemos rápido como o James Dean, estamo-nos nas tintas para a saúde pública, não queremos saber dos mais velhos, não consideramos os mais frágeis, organizamos festas descontroladas em plena pandemia, dançando egocentricamente enquanto borrifamos o ar de COVID. Alguém acredita nisto? Se bem se lembram, ainda há dois meses eram os idosos os estarolas da odisseia, teimosos, insuportáveis, apenas porque resistiam ao encarceramento. Pelo caminho, também já houve um tempo em que os culpados eram os banhistas a monte na praia de Carcavelos ou o povo do Norte que, segundo a famosa reportagem, é mais velho e mais inculto do que o povo do Sul, um outro tempo em que a Organização Mundial de Saúde e a ministra da Saúde não se decidiam em relação às máscaras, ou o tempo em que os chineses, que morderam um morcego ou lá o que foi, eram os vilões da telenovela. Nos EUA, por exemplo, houve quem resolvesse apedrejar pessoas de origem asiática, tão chinesas como eu mas isso não interessa, tal era o fervor da raiva acéfala. Nos últimos dias, circularam imagens preocupantes de ajuntamentos noturnos em praças que contrariam todas as recomendações da Direcção-Geral da Saúde – grupos grandes de jovens ao molho, sem máscara, a partilhar garrafas de vinho em vez dos frascos de álcool gel que a tia recomendara – deixando a opinião pública em alvoroço. Se é irresponsável fazer uma festa nestes preparos? Tremendamente.
Mas será este o motivo pelo qual o número de infectados tem aumentado? Não saberíamos. É, aliás, difícil apurar, já que para tal teríamos de esperar até catorze dias dos eventos, mas não foi bem o que aconteceu. Dos comentadores do costume às mais altas patentes do Estado, choveram apelos à urgência de impedir ajuntamentos deste tipo, aproveitados por vários canais no sentido de dar a entender que era esta a origem dos novos surtos. Serão mesmo? Ou estaremos a teimar em não olhar para o óbvio?
Atentemos nas freguesias recolocadas pelo governo em estado de calamidade: Queluz e Belas, Massamá e Monte Abraão, Agualva e Mira-Sintra, Algueirão e Mem Martins, Rio de Mouro, Cacém e São Marcos, Camarate, Unhos, Apelação, Sacavém e Prior Velho, Santa Clara, todo o concelho da Amadora e todo o concelho de Odivelas. À primeira vista, decerto parece haver algo comum a todas estas zonas, pois façamos o exercício de as tentar vislumbrar. Serão estas as freguesias onde há mais “festas ilegais”? O paraíso dos botellones? Ou serão antes as zonas onde vive quem nunca pôde parar de trabalhar, quem nunca teve alternativa aos transportes públicos, quem nunca pôde ficar em casa a aprender receitas de pão caseiro, nem no pico da pandemia? Serão estas as freguesias da despreocupação, da negligência e da irresponsabilidade? Talvez não. É bastante mais lógico observarmos o contrário. Os novos surtos resultam da precariedade na habitação, no trabalho e no transporte que as populações mais desfavorecidas enfrentam, longe da segurança das nossas casas, dos nossos escritórios e dos nossos carros com ar condicionado. Os novos surtos têm o epicentro nas carências económicas das franjas populacionais da periferia lisboeta e atribuí-los ao hedonismo egoísta dos jovens é não ver a verdade ou não querer vê-la.
Mas voltemos aos jovens, o bode expiatório desta semana e a geração que ainda não conseguiu viver 10 anos sem levar com uma crise colossal em cima. Nas últimas semanas, tenho escrito sobre como o vírus se tem revelado uma tragédia para todos sem excepção, todavia atacando em graus diferentes grupos distintos. Já escrevi, por exemplo, sobre como o isolamento afecta particularmente os mais velhos e doentes, com menos tempo de vida de sobra, sobre como a crise afunda especialmente os mais pobres e desprotegidos, sobre como há profissões mais prejudicadas e existências mais expostas à calamidade. Mais uma vez, é evidente que não estamos todos no mesmo barco. Também é certo, como já deixei explícito, que não me sinto parte de quem mais sofrerá com tudo isto. Ainda assim, é essencial que uma coisa fique clara, sem nunca entrar em vitimizações enjoativas, mas antes no sentido de nos entendermos uns aos outros: para quem está no início da sua vida, esta situação é uma profunda catástrofe. Não é de mais pedir um pouco de empatia.
Para quem, como eu, está no arranque de tudo, a situação não é mais fácil porque a doença nos ataca menos, nem porque temos mais anos pela frente. Não sentimos medo só pelos nossos avós, nem só pelos mais frágeis da sociedade. Pelo contrário. Sentimos o medo na pele, talvez não da doença, mas das consequências brutais que assumimos sem hesitar pelo bem de todos. Quem dá hoje os primeiros passos na construção de um amanhã cresceu a ouvir dizer que faz parte da primeira geração da História que já não viverá melhor do que viveram os seus pais. Por outras palavras, parecemos ser a primeira geração desde Adão e Eva a não acreditar que o amanhã trará melhores dias. Ora, no meio de mais uma crise mundial sem precedentes, apenas oito anos depois da última crise mundial sem precedentes, essa perspectiva assalta-nos o espírito com refinada violência.
A minha geração nasceu e cresceu em crise. Crescemos ouvindo o choro disfarçado dos adultos e, antes de fazermos dezoito anos, já nos tinham passado um planeta em colapso, a economia em derrocada, os sonhos amachucados e uma única certeza: a de que viveremos em constante incerteza. Esmorecida a fé nas grandes religiões, abafada em larga parte a crença na política, nascemos no arranque do ciclo histórico a que Lipovetsksy chamou A Grande Desorientação, porém não sem uma agravante no topo do bolo: o apocalipse ambiental iminente, tic tac, tic tac, herdado pela mão dos nossos pais como quem diz “boa sorte aí, rapaz”. Já pondo de lado tudo o resto, se nem a comunidade científica acredita num planeta habitável daqui a 40 anos, é suposto que acreditemos nós? Nós acreditamos, mas está difícil. É suposto que continuemos a sonhar com criar família? Nós continuamos, mas está difícil. Alguém tem energia para lidar com isto tudo? Nós temos, mas está difícil. Já estava antes do vírus. Hoje, está ainda mais.
A saúde mental dos mais novos é um problema real e isso agravou-se. Se o sonho comanda a vida, precisamos urgentemente de um. É fundamental que a comunidade se una, ao invés de se fragmentar, no sentido de resgatar a ideia de um horizonte possível.
Precisamos, repito, de nos compreender. Já seria um passo deixarmo-nos de bodes expiatórios.