Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
Todos os dias são publicadas mais de 2700 notícias falsas sobre o novo coronavírus, alerta a Comissão Europeia. O obscuro fenómeno das fake news já é unanimemente um perigo: precede a disseminação planetária de ideias radicais, a eleição de líderes de extrema-direita, o nacionalismo iletrado que ditou o Brexit, a reprodução da ignorância confusa dos povos e, agora, a morte por desinformação. Em época de pandemia, parece digno de um vilão do Batman espalhar a notícia de que é inútil lavar as mãos ou de que o vírus foi concebido em laboratório como arma química, mas a verdade é que alguém o faz e muita gente lê. Todos os dias. Num panorama de crise para o jornalismo de referência, exausto a lutar na areia movediça, é tempo de afirmarmos a noção de que a democracia, e a nossa vida, estará em risco sem estratégias claras para salvar a informação da barbárie.
O jornal New York Times publicou esta quinta-feira uma carta assinada por 100 especialistas em saúde pública, que pede aos responsáveis pelas gigantes tecnológicas – em especial a Google, o Youtube, o Twitter e o grupo Facebook, onde se insere o Instagram e o Whatsapp – para travarem a onda de desinformação que impera na Internet. Ricardo Mexia, presidente da Associação de Médicos de Saúde Pública, subscritor português desta carta, declara existir uma “infodemia” a cavalo da pandemia. O alastramento da doença acompanhou-se de uma vaga de desinformação mortífera, instalada desde os primeiros vídeos que chocaram o mundo com imagens falsas. Em Portugal, ainda o vírus vinha no adro, já circulavam áudios do cunhado de um primo de uma amiga que, reza a lenda, trabalhava no Hospital Santa Maria, ou no Hospital de Santo António, tanto faz, e que tinha verdades inconvenientes para revelar. Nos Estados Unidos da América, ainda há quem não acredite na existência do COVID-19, mesmo depois de se contarem 76 600 mortos naquele país, em parte graças a filmes divulgados com teorias da conspiração e informação falsa. Seria interessante testar a correlação entre não acreditar no coronavírus e crer que a Terra é plana. A desinformação, que tanto contribui para o pânico e a paranoia, como para a negação e a negligência, tem resultado em mortes reais, quer pelo modo como conduz a política, como pelo modo como desorienta os cidadãos. É um crime hediondo. A democratização dos meios de comunicação digital generalizou o acesso à produção de informação – outrora exclusivo dos profissionais legitimados pelos canais tradicionais -, e isso é óptimo em vários sentidos, mas abre ao mesmo tempo caminho a problemas demasiado graves para que o online seja um mundo sem lei. Veja-se o seguinte: se os jornais, a televisão e a rádio, estão sujeitos a um código legal e deontológico, que sentido fará que os meios de comunicação digital, tão mais potentes e eficazes, não estejam? Que sentido faz que baste apenas dinheiro para espalhar o pânico à escala global sem que qualquer entidade o regule, galvanizando pessoas através da mentira? A liberdade é um valor supremo, mas será possível que a democracia não se defenda daquilo que a destrói?
O submundo das notícias falsas não é infelizmente novo, mas o estado de emergência alertou-nos para a urgência de distinguirmos as fontes de informação. Façamos um teste rápido: em quem confiaria mais para lhe falar de saúde? Num infecciologista certificado ou num atleta de hóquei em patins? Hesitou? Não é tão evidente como parece. No dia-a-dia, o cuidado com a origem da informação que recebemos é pouco ou nulo. No Google, o artigo científico credível e a mentira incendiária estão à mesma distância de um clique, apresentando-se do mesmo modo, e isso faz com que a capacidade de distinguir um do outro seja entregue ao juízo de cada cidadão internauta – o que é, no mínimo, perigoso. Sabemos que o escândalo e o sensacionalismo vingarão sempre sobre a ponderação e a realidade. Por muito que, para uma minoria da população informada, habituada a ler, ágil com as tecnologias, conhecedora dos meios, seguidora de jornais e revistas, crítica em relação aos autores, seja fácil distinguir um gráfico manhoso recebido no Whatsapp de um estudo sério do Instituto Nacional de Estatística, essa distinção não é óbvia para toda a gente. Basta olhar para o Brasil, para os EUA, para o Reino Unido, onde a manipulação da opinião pública pela desinformação tem resultado em guinadas políticas tristes que alteram para sempre o curso da História. No Brasil, o jornal Folha de São Paulo divulgou, há semanas, uma investigação da polícia federal sobre Carlos Bolsonaro, filho do presidente brasileiro, suspeito de ser líder de uma rede de desinformação. Em Portugal, o Media Lab do ISCTE tinha, em janeiro deste ano, 47 páginas debaixo de olho no âmbito do projeto “Monitorização de propaganda e desinformação nas redes sociais”, dedicadas à veiculação de mensagens falsas de carácter populista, extremista e/ou discriminatório. Entre estas páginas alistam-se plataformas como a Anonymous Portugal, Tugaleaks, Direita Política, Notícias Viriato ou O Gato Político. Muitas destas, onde se incluem sites reconhecidos pela Entidade Reguladora da Comunicação, têm mensagens políticas claras, propósitos ideológicos concretos, mobilizam a opinião pública e são financiadas por entidades anónimas, sediadas no estrangeiro inclusive, ao estilo de um episódio da série Black Mirror. Arrepiante. Na outra face da moeda, vemos os meios de comunicação idóneos – os poucos que restam – com cada vez mais dificuldade em manter o equilíbrio num contexto em que as pessoas se habituaram a receber informação gratuita.
O leitor contemporâneo, primeiro e último interessado em saber a verdade, não compra jornais, não assina revistas, não paga pela informação, tudo bem, mas quem pagará então? Quem pagará aos jornalistas, aos investigadores, a quem faz um trabalho sério, se o cidadão comum não se dispõe a pagar por esse trabalho? Seria essencial refletirmos nisto: porque não estaremos dispostos a pagar o preço de uma lata de refrigerante para termos acesso mensal a informação fidedigna? Estaremos a confiar no tal atleta de hóquei em patins, ou no amigo das patuscadas, para nos informar sobre o universo via Whatsapp? Pensemos. Independentemente da resposta, é fundamental garantir força às instituições que defendem a verdade, ou corremos o risco de nos afundarmos num pântano distópico onde ela não existe.
“Vêm aí tempos sombrios”, ameaça o FMI, referindo-se ao impacto económico da pandemia. Quanto ao futuro da democracia, é cada vez mais claro: ou se tomam medidas para proteger a verdade, esse bem precioso que devemos preservar, ou estaremos condenados a não voltar a ver a luz, desorientados por interesses obscuros. Está nas mãos de quem ainda não parou de pensar. Está nas nossas mãos.