Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
Não “vai ficar tudo bem” no universo do trabalho, desenganemo-nos, mas também não tem de ficar tudo mal. Os desenhos a lápis de cera com que nos premiaram crianças de todo o mundo não chegam para nos salvar do desemprego galopante, da recessão, das vidas incertas, e o futuro parece cada vez menos arco-íris. Na outra face da moeda, avistam-se fenómenos marcantes no planeta Trabalho que o recurso à tecnologia evidenciou: o trabalho à distância é possível em certas áreas e muitos descobriram nele uma rotina mais segura, flexível, ecológica, confortável, mais produtiva até, dependendo dos casos. Ao mesmo tempo, a sociedade descobriu finalmente o valor dos trabalhadores essenciais, habituados ao desprezo, os “heróis” que cuidam de nós a troco de aplausos, ou nem isso. Na recuperação da crise, temos de garantir que não esquecemos estas luzes.
A economia portuguesa é hoje mais forte do que há dez anos, diz-nos Valdis Dombrovskis, vice-presidente da Comissão Europeia, mas não o suficiente para não enfrentarmos “uma situação complicada”. As previsões são de que o desemprego continue a disparar à escala mundial, amarga e ironicamente agora que parecíamos estar, pouco a pouco, a recuperar da última crise. Nos EUA, já se contam mais de 30 milhões de pedidos de subsídio de desemprego em seis semanas –um colapso sem precedentes e uma situação de catástrofe – a juntar às mais de 67 000 mortes provocadas pelo novo coronavírus (à data de hoje) no país mais rico do mundo. Veremos quem mata mais – se o vírus, se a crise financeira. No Brasil, a situação agrava-se com o desgoverno de Bolsonaro, provando que a ideologia e a incompetência podem de facto ser questões de vida ou de morte. Guardamos no pensamento os irmãos brasileiros, de acordo com o que nos pediu Chico Buarque no 25 de Abril. Em Portugal, a situação é outra, mas o FMI prevê que cheguemos em breve aos 14% de desempregados, retrocedendo até aos valores dos tempos da troika. O horizonte é severo. A recuperação dependerá muito, mas mesmo muito, da resposta europeia no plano de relançamento das economias.
No campo do que podemos retirar da presente catástrofe, salta à vista o papel da tecnologia na reorganização necessária do tempo e espaço. O vírus forçou a sociedade a encontrar alternativas ao contacto presencial e a Internet estendeu a mão, permitindo-nos trabalhar a partir de casa, participar em reuniões, dar apoio à família, obrigando todos a aderir às plataformas, até os mais céticos do mundo digital. Deste período, saímos com a certeza reforçada de que nada substitui o calor de estarmos juntos ao vivo, olhos nos olhos, mas confirma-se a visão de que, em situações específicas de trabalho, o virtual é cada vez mais uma alternativa viável, satisfatória e até preferível. “Afinal, há reuniões que podiam ter sido só um e-mail”, escreveu-se algures, em tom de ironia. Havendo inúmeras atividades impraticáveis à distância, como é óbvio, foi possível para muita gente, em situações concretas, organizar melhor o dia, conciliar horários com a família, não perder horas no trânsito, eternidades nos transportes públicos, reduzir brutalmente a pegada ecológica e ganhar qualidade de vida, garantindo o mesmo desempenho. Em suma, será irrealista acreditar que podemos substituir o trabalho presencial por teletrabalho, mas será também pouco inteligente ignorar o quanto podemos viver melhor se utilizarmos ferramentas que já existem e que acabam de provar que funcionam.
E, por último, os novos essenciais. Aparentemente, a sociedade despertou em 2020 para um conjunto de trabalhadores, que, pelos vistos, nos são consensualmente essenciais. São eles os profissionais de saúde, os repositores de alimentos, os transportadores de mercadorias, as forças de segurança, os agentes de socorro, os operadores de caixa e comércio, os cientistas, os políticos e funcionários autárquicos, os cuidadores e o sector solidário, os professores, os assistentes sociais, os jornalistas e repórteres, os cozinheiros para fora, as motinhas “take away”, os técnicos de higiene pública, os trabalhadores da recolha de lixo, entre tantos e tantos que nos mantiveram a salvo. Entre tantos e tantos que, habitualmente mal pagos, maltratados e desrespeitados, foram vistos como “essenciais” pela primeira vez na sua vida. Da noite para o dia, aplaudimos a Saúde que nos salva, a Infraestrutura que nos sustenta, a Segurança que nos protege, a Solidariedade que nos defende, a Informação que nos orienta e a Cultura que nos dá espírito. Vamos esquecer-nos disto? Será, aliás, caso para perguntar: de que nos valeram tantos dos profissionais mais bem pagos do mundo quando bateu a crise? Que papel tiveram? Não será tempo de redefinirmos, no futuro, o modo como tratamos as funções essenciais?
“O essencial é invisível aos olhos”, lê-se n’O Principezinho. Contudo, ao que tudo indica, deixou de o ser neste ponto. O que aconteceu nos últimos meses é demasiado visível e importante para ser esquecido: há novos meios para equilibrar trabalho e qualidade de vida, há trabalhos fundamentais que merecem respeito e recompensação urgente. Vem aí uma tempestade, já se sabe, mas observar e aprender é o mínimo ao nosso alcance.