Para efeitos meramente pictóricos, vamos imaginar um português comum chamado João.
Esse português, vamos supor na casa dos 40 anos, tem um endereço de e-mail da Google, que utiliza para se registar em todas as dezenas de aplicações que usa no seu telemóvel de um grande fabricante internacional. O João tem também contas em diversas redes sociais: Facebook, onde estão também os pais e as tias velhas e que por isso já quase não usa, Instagram para meter fotos giras e onde mostra toda a sua vida ao mundo, Twitter para mandar umas bocas e achar-se inteligente e Tik Tok quando gosta de se exibir e fazer figuras em público.
Como é solteiro, tem, claro, conta no Tinder, onde se esforça por engajar com miúdas variadas. Tem Spotify, Netflix, HBO e essas coisas que hoje são quase como água corrente na torneira. Já não sabe o que é usar dinheiro no seu dia-a-dia, porque praticamente faz tudo com o Mbway e o Revolut. Nas portagens usa sempre a Via Verde e faz a maior parte das suas compras online, sejam coisas de supermercado ou os ténis da moda mais baratos. Anda sempre de Uber e encomenda todas as semanas várias vezes coisas na Glovo. No Whatsapp, é certo, passa metade da sua vida. Fala com os amigos, com a família, com os colegas do trabalho, com os contactos profissionais, com meio mundo. E partilha tudo e mais alguma coisa, incluindo ocasionais fotos das partes baixas.
O João, é um facto, estranha um bocadinho quando, por acaso, clicou um dia num anúncio de jacuzzis (não vamos elaborar sobre esta parte), e de repente começa a sentir-se perseguido por jacuzzis em todo o lado por onde anda. E jura a pés juntos que o telemóvel ouve as suas conversas, um velho mito urbano que atesta já ter acontecido consigo. Nada que o aflija, claro, porque valores mais altos se levantam: a tecnologia tem destas coisas, pouco importa, e não há tempo a perder, quando lhe mostram os termos e condições é meter a cruz sem olhar para aquelas páginas chatas.
Mas o João é um homem que gosta de embarcar na última polémica que está a dar nas redes. E acha que marca sempre pontos se aparecer por aí como um tipo zeloso dos seus direitos e, de vez em quando, defensor das minorias e da causa feminina.
Desde quarta-feira que João anda deveras indignado com a StayAway Covid. Já partilhou 7 memes e pelo menos 5 artigos de opinião contra a app, bradando aos céus digitais o quanto esta medida é um verdadeiro atentado à sua privacidade. A privacidade, esse direito supremo, que tem de prevalecer acima de tudo, mesmo quando, em emergência e perante uma pandemia imparável, é preciso suprimir o mais elementar direito da liberdade de circulação. Sobre isso, o João encolheu os ombros. Tinha de ser, que remédio, mas ele sabia – e repetiu amiúde – que vai ficar tudo bem.
João sabe que estamos numa situação de crise de saúde pública, e tem apenas a vaga ideia que a app guarda, de forma anónima e encriptada, apenas a informação de com quem se cruzou durante 14 dias, para o alertar caso um infetado com uma doença potencialmente mortal tenha tido um contacto próximo com ele. João não sabe que a app, na verdade, praticamente não serve para nada neste momento, porque foram gerados pouquíssimos códigos pelos médicos perante casos positivos. E também nem equacionou que tal medida é na verdade quase impraticável porque tem uma fiscalização impossível e é fácil de contornar. Não chega tão longe, o João.
João acha, sim, inimaginável, inaceitável, inadmissível, esta intrusão na sua privacidade. Jamais! Serve a app para ajudar a salvar vidas, incluindo a sua? A ele, João, que tem toda a sua vida documentada ao mais ínfimo detalhe na Google, no Facebook, no Instagram, no Twitter, na Uber, na Glovo, na Netflix, na HBO, na Apple, na Via Verde, na Visa, no Revolut, no Spotify, no Messenger, no Tinder e no Whatsapp, isso pouco importa! Afinal, ele é um homem de princípios!
Este é o João, o hipócrita digital. Não sei se conhecem alguém assim.