Dia 122.
Comecei com pequenos sintomas na semana anterior. Dores de cabeça incomuns vários dias seguidos, que desvalorizei justificando com enxaquecas mais persistentes. Depois vieram as dores de barriga, que desvalorizei justificando com algo que a família teria comido, já que a minha filha mais nova e o meu marido também estavam na mesma. E depois, chegaram as manchas vermelhas nas pernas, dos pés até um palmo acima dos joelhos, que pareciam sangue pisado. Que coisa estranha, já li algo sobre isto, chegou a ocorrer-me nos 15 segundos de manhã em que tenho tempo de pensar nestas coisas.
Dois dias depois, sou informada que, num local que frequento diariamente, foi detetado um caso positivo de Covid-19. Disparou na minha cabeça a campainha de alerta: ora bolas, terei Covid? Alguma dia podia tocar-me a mim.
Para enquadrar, é preciso explicar que vivo numa família com seis pessoas, entre as quais quatro miúdos. Houve períodos, quando os meus filhos eram mais pequenos, em que estava sempre um doente. Cabeças e ossos partidos, feridas e cicatrizes, viroses várias, febres passageiras, bronquiolites seguidas, tosses, laringites, amigdalites, já tive de tudo várias vezes aqui em casa. Tudo normal, tudo fruta da época, algo que aprendi a gerir com a maior descontração. Só ligo à febre sem outros sintomas ao quarto dia, sei distinguir as várias sonoridades e silvos das tosses e sou especialistas em fazer curativos de feridas. Costumo dizer que tirei um curso rápido e intensivo de enfermagem e pediatria, o que faz com que só me preocupe realmente quando a coisa é mesmo séria. Comigo, pior ainda, claro está. Porque numa família grande a saúde da mãe fica no último lugar do ranking familiar, inclusive atrás do cão.
Só que agora, é tudo diferente. Não se trata apenas da minha saúde, mas da de todos os outros à minha volta. Os meus filhos, os meus pais e sogros, os meus colegas com quem convivo diariamente, com muitos cuidados, é um facto, mas várias horas no mesmo espaço. Assalta-me um peso da consciência triplamente pesado: e se estou doente, não ligo, e contamino esta gente toda à minha volta? Em tempos de Covid-19, não nos podemos dar ao luxo de ignorar sintomas vários. Porque é muito fina a linha entre ser descontraído e ser perigosamente negligente. E eu não quero, não consigo, viver com a culpa e a responsabilidade de poder, com a minha conduta, colocar alguém em perigo.
A situação exigia pois que me detivesse a pensar no assunto mais do que os 15 segundos. Dores de cabeça, dores de barriga e diarreia, manchas vermelhas na pele… Não são os sintomas mais comuns, é um facto, mas todos eles estão associados à doença. Mas o problema é que a doença dá tudo e mais alguma coisa, e além das típicas febre e tosse que costumam vir com as infeções respiratórias. E é sabido que 20 a 40% dos casos são assintomáticos. Só que agora, com um caso próximo, não podia continuar a ignorar os sinais. Passei rapidamente em revista os meus dias e contactos próximos: no dia anterior tinha estado na redação e ido jantar aos meus pais, ambos de grupos de risco. Nesse dia tinha o meu sobrinho e um amigo dos meus filhos a dormir lá em casa. E se?…
Não podia esperar mais. Liguei para a Linha de Saúde 24, cujo atendimento foi altamente competente. Disseram que teria de fazer teste, e por isso teria de ir ao meu centro de saúde para o exame me ser prescrito. Isolei-me e acabei por fazer teste nesse mesmo dia, num privado, com uma prescrição da medicina do trabalho.
No Centro de Congressos do Estoril estava toda uma coreografia bem montada e afinada. Uma sala de espera gigante, cadeiras distanciadas umas das outras, funcionários protegidos com fatos completos, cuja missão é desinfetar todas as cadeiras imediatamente a seguir a alguém se levantar. Máximo zelo. Lá levei com a zaragatoa pelas fossas nasais acima até quase ao cérebro (não custa assim tanto como parece), restava-me pois esperar pelos resultados.
Tive uma noite mal dormida. E se?… Olho-me ao espelho pela fresca. Acordei com olheiras, de socalcos debaixo dos olhos, claramente mal encarada. Raios, não é que a pandemia me bateu mesmo à porta?, pensei. Deito-me outra vez, a fazer contas à vida e a somar numa lista mental os contactos próximos que tive nos últimos dias, quais deles poderiam ser mais sensíveis (ai, as crianças da creche colegas da minha filha!), as vezes que levei as mãos aos olhos e à boca e toquei em objetos. Dezenas, centenas? Oh não… Um vibrar do telemóvel acordou-me do pesadelo que estava a construir na minha cabeça. O alívio chegou por sms: “Pesquisa de Coronavírus. Resultado: Não detetável”. A explicação detalhada para quem não compreenda bem a mensagem: “Um resultado não detetável significa que não foi detetado o vírus SARS-CoV-2 na amostra analisada”. Saiu-me de cima o peso de um fardo que levei horas a agigantar. Ufa, escapei, escapámos todos desta.
Moral da história: não vale a pena facilitar, é preciso mesmo ficar atento a todos os sinais. Não é à toa que as recomendações da OMS são para testar, testar, testar. Mas começo a imaginar o inferno que será o nosso inverno, quando chegarem as viroses normais e as gripes sazonais – todas elas com os mesmos sintomas da Covid-19. A sombra da Covid à espreita todos os dias. A toda a hora esta angústia. E se?… Não temos outro remédio. Fazer testes vai fazer parte do nosso famoso “novo normal”. Melhor isso do que correr riscos. Habituemo-nos: as zaragatoas vão passar a ser as nossas melhores amigas…