Quando, numa manhã de início de novembro de 1961, Amândio Silva (AS) comprou em Rabat seis bilhetes no voo TAP de Casablanca para Lisboa do dia 10, estava consumada a decisão irreversível de uma das ações com maior repercussão, mais ousadas e inventivas, contra a ditadura de Salazar – tão inventiva que foi a primeira do género a nível mundial.
Ainda de madrugada, AS apanhara o autocarro para a capital marroquina em Tânger, onde ele e mais cinco companheiros preparavam a “operação Vagô”. Tinha só 22 anos, e aos 20, em 1959, já tinha sido um dos conspiradores da “revolta da Sé”, uma frustrada tentativa de militares e civis, entre estes muitos católicos, para derrubar o regime e instaurar a democracia em Portugal. Preso e julgado, esteve um ano encarcerado no Aljube. Solto, continuando a ser perseguido, e na iminência de nova prisão, pediu asilo político na embaixada do Brasil, onde já estivera refugiado, entre outros, Humberto Delgado. E daí partiu para o exílio, no Brasil, com a firme determinação de continuar o combate contra o fascismo à portuguesa.
Para o “exercício” efetivo desse combate estava, pois, em Tânger, e entre aqueles cinco companheiros já então se distinguiam Hermínio da Palma Inácio, o mais velho e líder do grupo, e Camilo Mortágua, que fora, em janeiro, ao lado de Henrique Galvão, um destacado elemento do assalto e desvio do paquete “Santa Maria”, rebatizado “Santa Liberdade”. Os outros três titulares dos seis bilhetes do voo eram, além do próprio Amândio, Fernando Vasconcelos, João Martins e Helena Vidal. Helena, grávida, levou amarradas à volta da barriga as armas dos patriotas que, sem qualquer espécie de violência, conseguiram “tomar” o avião e concretizar o seu corajoso e espetacular objetivo: lançar sobre Lisboa, naquele dia 10 de novembro de 1961, cem mil folhetos de denúncia da ditadura e apelo à luta contra ela.
Foi esse combatente da liberdade e da democracia, homem sempre solidário, defensor entusiasta, até ao fim, de boas causas, Amândio Silva, que morreu no domingo, 31 de janeiro, aos 82 anos, na sua casa na Parede, vítima de cancro. A Lusa distribuiu a notícia, destacando aquela famosa “operação”, notícia que alguns jornais publicaram, outros nem isso, ou pelo menos não dei por ela – e no que ouvi na rádio, e vi na televisão, também não dei, mesmo em rodapé…
Combatente, chamei-lhe. E de muitos combates. Aqui e agora quero sublinhar um deles, que ocupa lugar relevante no seu percurso e no seu trabalho de décadas: o combate pela amizade, solidariedade, fraternidade luso-brasileira; pela aproximação, o reforço de laços e de iniciativas comuns, em benefício mútuo, entre Portugal e o Brasil. Talvez ninguém como AS tenha pugnado e realizado tantos esforços concretos nesse sentido, a vários níveis e em diversos domínios. Não vem para aqui, nem isso seria possível, fazer um inventário, ainda que breve, desse incansável labor – mas apenas dar uma ideia dele. E sublinhar que nunca terá sido salientado e moralmente compensado como devido, até porque não era dos que se põem em bicos de pés para aparecerem e se valorizarem, antes dos que promove, organiza, faz – dando a ribalta a outros, preferindo ficar na sombra.
Recorde-se que após o lançamento dos cem mil folhetos sobre Lisboa, o avião regressou a Marrocos para desembarcar os seis responsáveis pela histórica e pioneira ação contra a ditadura, que foram detidos. Saltando etapas, acabaram por poder regressar ao Brasil e cada um seguir o seu caminho. Caminhos difíceis e alguns tão extraordinários como os de Palma Inácio e Camilo Mortágua. Amândio permaneceria no Brasil. E o seu desígnio “luso-brasileiro”, com os dois países democracias e não ditaduras, progressivamente se fortaleceu.
Após o 25 de Abril, foi nomeado conselheiro, no seu caso dos Assuntos Sociais, da embaixada de Portugal. Ao mesmo tempo que o foram, para diferentes áreas, outros dois também exilados políticos: Jaime Conde (igualmente implicado na “revolta da Sé”) e Jacinto Rego de Almeida (oficial de Marinha, que desertara). E nessa qualidade, com os meios de que dispunha, AS trabalhou sempre para aquele mesmo objetivo. Até regressar, enfim, a Portugal, e aqui desenvolver um trabalho ainda mais determinante para o alcançar. Sem – há muitos anos militante do PS, tantos anos governo – nunca ter tido, nem desejado, e julgo que mesmo rejeitado, qualquer cargo de relevo ou sinecura. Mantendo sempre a mesma seriedade, simplicidade, atenção às pessoas, trabalho dedicado e desinteressado naquilo em que acreditava.
Destaco o seu labor para a criação da Fundação Luso-Brasileira para o Desenvolvimento do Mundo de Língua Portuguesa, que teve um papel e promoveu iniciativas assinaláveis, em múltiplos sectores, do económico ao cultural, passando pelo social e o político. E criou quatro prémios anuais, muito valorizados, para distinguir personalidade do Brasil e de Portugal que nesses sectores se distinguissem.
Anote-se que para sustentar, em todos os sentidos, a Fundação, foi fundamental conquistar para a sua causa destacadas figuras do mundo da economia e finança, empresários e gestores, de par com muitas outras do mundo intelectual. Cite-se, por exemplo, Pedro Rebelo de Sousa, salvo erro ao tempo presidente de um banco, e que foi o primeiro presidente da Fundação – tendo sempre apoiado muito Amândio. Mesmo quando, por força de circunstâncias adversas, a Fundação se foi descaracterizando, entrando em declínio, deixando de ter meios para manter a sua anterior ação, e AS, sempre combativo, criou, já sem aquela panóplia de empresários & companhia, a Associação Mares Navegados.
Entretanto, nos bons tempos da Fundação, o Amândio andava numa roda viva entre Portugal e o Brasil, para obter os meios, incluindo financeiros, indispensáveis para realizar os projetos e alcançar os fins pretendidos. Projetos e fins que não eram pequenos… De tal forma que a certa altura conseguiu a cedência, pela Câmara de Lisboa, da Quinta dos Alfinetes, para aí ter a sua futura sede. Sede que seria ao mesmo tempo um Centro Cultural, desejadamente com projeto do genial arquiteto brasileiro Óscar Niemeyer. E Óscar, uma personalidade também humanamente fantástica, em 1991 fez mesmo o projeto, e ofereceu-o, sem qualquer remuneração ou contrapartida! Só que, infelizmente, ele não se “concretizou”: ainda arrancaram as obras, mas depressa pararam por falta de recursos para as prosseguir. Porém, veja-se como são as coisas, logo após o “criador” (com Lúcio Costa) de Brasília morrer, a 5/12/2012, o então presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, anunciou que Niemeyer teria, em sua homenagem, um Centro Cultural e Empresarial na cidade, dando corpo ao seu aludido projeto. E foi muito específico, afirmando que a primeira pedra seria lançada no dia 13 de junho de 2013…
Nunca baixou os braços, nunca desistiu, mesmo doente, o Amândio. Nos últimos tempos, de par com a Associação Mares Navegados, empenhou-se ainda na constituição e dinamização do Movimento Liberdade e Pensamento Crítico. Com, entre outros, alguns velhos companheiros, como o Camilo Mortágua – que já há anos deu a lume dois preciosos livros de memórias, até ao 25 de Abril, esperando-se um terceiro, que já está a tardar… Memórias de que também há algumas, gravadas, do AS, a serem tratadas pela historiadora Heloísa Paulo, do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra. E a sua divulgação/publicação será seguramente um derradeiro contributo para a indispensável preservação da memória da resistência à ditadura e da luta porfiada por boas causas – com destaque para a “luso-brasileira”, em si mesma e no contexto da lusofonia – do homem e cidadão de corpo inteiro Amândio Silva.