Em menos de dois dias a comissão técnica designada para rever os incentivos dos médicos de família retirou a proposta anunciada de atribuir um adicional remuneratório aos médicos que evitassem a interrupção voluntária da gravidez. Pediu desculpa às mulheres por se ter lembrado daquele incentivo e o assunto parece ter terminado bem.
Convirá, todavia, analisarmos o racional subjacente àquele incentivo, contextualizá-lo no trabalho dos médicos de família e percebê-lo no âmbito dos incentivos já existentes. Os incentivos destinados aos médicos de família pretendem estimular as melhores práticas em medicina geral e familiar, mas raramente se dirigem aos resultados esperados, antes aos procedimentos que se realizam. Há vários exemplos: medir regularmente a tensão arterial dos inscritos é uma boa prática, mas só terá impacto quando daí resultem utentes com tensões arteriais controladas. Ou seja, o objetivo deveria ser ter os utentes com a tensão arterial equilibrada e não saber se a mesma é frequentemente medida. Sucedem-se uma série de incentivos do mesmo tipo que acabam por ser apenas de natureza intencional, não conseguindo traduzir a realidade efetiva, como na diabetes, por exemplo.
O incentivo ligado à interrupção voluntária da gravidez nasceu da intenção de promover, junto dos médicos de família, um foco privilegiado no controlo do planeamento familiar das suas utentes em idade fértil. À partida, o planeamento familiar é uma boa prática que dá às mulheres informação e treino sobre as formas de terem gravidezes planeadas e desejadas e reduzirem, ao mínimo, as situações imprevistas ou indesejadas. Importa considerar que o apoio do médico de família neste processo deve integrar, sempre que possível e adequado, o companheiro ou cônjuge, situação que o tal incentivo parecia não prever. Sendo assim, e em bom rigor, a gestão da gravidez e a opção de a continuar ou interromper, já não cabe na estratégia do planeamento, antes incide exclusivamente na decisão da grávida e de quem ela entenda consultar para o efeito. Confundir os dois planos e sugerir que evitando a interrupção da gravidez estamos a promover o planeamento familiar é um erro epistemológico perigoso.
Se não vejamos:
- O planeamento familiar não trava completamente a gravidez indesejada ou imprevista. O acompanhamento clínico da grávida e o respeito pelas suas opções são tarefas e atitudes mandatórias para qualquer médico e isso pode desembocar numa interrupção voluntária da gravidez por diferentes motivos (pessoais, sociais, económicos, riscos associados,etc.). A boa prática médica é a que segue esta orientação. Quando se incentiva um médico a violar esta conduta e a convidar a grávida a continuar a sua gravidez, estamos a pôr em causa o comportamento ético do profissional.
- Ao pretender-se incentivar a continuação da gravidez, em oposição à sua interrupção, introduzimos um juízo moral sobre o comportamento da grávida que se aproxima rapidamente das conceções mais reacionárias sobre a procriação e a liberdade individual e sexual de cada um, o que é manifestamente intolerável.
- Um número crescente de grávidas é hoje acompanhado por médicos obstetras e não por médicos de família, numa tendência que privilegia o especialista, dentro de um percurso integrado da gravidez, parto e puerpério. Deste modo, os médicos de família têm, aqui, um papel cada vez mais reduzido, não havendo nenhuma evidência de que este incentivo tivesse especial impacto no planeamento familiar.
É, até, particularmente surpreendente que a referida comissão técnica se tenha dado ao trabalho de encontrar um incentivo para o planeamento familiar, quando a IVG diminuiu cerca de 25% até 2018, justamente após a sua legalização (curiosamente, deixamos de ter relatórios oficiais disponíveis a partir de 2019).Por outro lado, seria importante que a comissão se debruçasse sobre incentivos aos médicos de família que fossem de encontro aos principais objetivos da sua missão: atender os seus utentes no próprio dia, evitar a deslocação de doentes com pequenas afeções aos serviços de urgência, visitar no domicílio os mais idosos e com fortes limitações na mobilidade. Estas tarefas, que marcariam bem a diferença dos médicos de família num panorama em que temos cerca de 7 milhões de urgências por ano, 60% das quais classificadas de clinica geral, justificariam bem algum tipo de incentivos, pois contribuiriam, para um SNS mais responsivo, baseado em cuidados primários de qualidade e libertando, assim, o trabalho dos hospitais para se poderem concentrar em doentes eletivos e complexos.
Fica, como nota final, a louvável atitude da comissão técnica que, com humildade, interrompeu voluntariamente a insensatez que inicialmente demonstrou.
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