Ficamos a saber, na passada semana, que apenas 11% dos municípios portugueses aceitaram formalizar a transferência de competências do SNS para o seu perímetro de responsabilidades, ou seja, 23 municípios dos 201 possíveis. Importa dizer que o prazo fixado para se consumarem tais transferência terminou já no dia 31 de março p.p.
O quadro de transferência de competências neste domínio está definido no Dec. Lei nº 23/2019 de 30 de janeiro, e tem como motivação um conjunto ambicioso de valores e princípios inerentes às vantagens da descentralização de competências do Estado, e em particular do SNS, na área dos cuidados primários, para as autarquias e comunidades intermunicipais, a saber:
- A Reforma do Estado, propiciando uma descentralização democrática de funções/competências até agora na esfera do poder central, na convicção de que desse modo se aproximam os recursos e a gestão dos cidadãos através da ação das autarquias;
- Promover o melhor acesso ao SNS e às estratégias de prevenção da doença, numa lógica de equidade na distribuição de recursos pelo território nacional;
- Reforçar as competências das autarquias locais, tendo em conta o melhor interesse dos cidadãos, beneficiando estes de uma resposta mais ágil e eficiente dos serviços de saúde.
Para esta missão, o legislador define, no seu artigo 5º, um conjunto de objetivos estratégicos que apontam para o aperfeiçoamento contínuo do serviço público, através da melhoria e a inovação das respostas, com mais eficácia e mais qualidade, com projetos de excelência. Os resultados esperados com estas transferências de competências seriam, assim, promover a eficiência da gestão do SNS e obter ganhos em saúde para os cidadãos.
Ora, da leitura do acervo de competências a transferir para as autarquias e comunidades intermunicipais, não se consegue perceber a relação das mesmas com a missão e os objetivos traçados neste processo de descentralização. As matérias envolvidas na transferência de competências têm fundamentalmente a ver com edifícios, outros bens patrimoniais e atividades de natureza logística e pouco ou nada com o funcionamento dos serviços prestadores de cuidados primários. As transferências de competências que são acompanhadas de transferências financeiras assentam nas situações pretéritas ou vividas no momento da sua execução, não contemplando mudanças, atualizações ou ampliações, nem de estrutura nem de procedimentos ou de recursos. A gestão dos serviços clínicos continua na órbita do poder central, bem como a gestão dos profissionais, com exceção dos Assistentes Operacionais que passam para as autarquias.
Mas vejamos as competências a transferir:
- Manutenção e conservação de edifícios, instalações e equipamentos não clínicos;
- Titularidade de viaturas e todos os encargos inerentes;
- Construção e equipamento não clinico de novas unidades de cuidados de saúde primários, de acordo com orientações técnicas do Ministério da Saúde e com base num quadro de prioridades nacional a definir, sendo que uma parte dos custos é suportada pelo OE (há um programa financeiro para o investimento) e outra parte pelo poder autárquico;
- Gestão dos trabalhadores inseridos na carreira de assistente operacional (com a correspondente transferência de posição e de verbas para os quadros das autarquias);
- Participação das autarquias nos programas de promoção da saúde, designadamente na adoção de estilos de vida saudáveis e apoio ao envelhecimento ativo, áreas em que os municípios vêm dando, há muito tempo, um precioso apoio às comunidades locais.
Com se pode verificar, o funcionamento dos centros de saúde/Unidades de Saúde Familiar não é objeto de qualquer descentralização, retirando do contexto aquilo que mais poderia entusiasmar o poder local. De facto, o que os autarcas pretendem é poder intervir na gestão dos cuidados primários, por exemplo, revendo os horários de funcionamento para proporcionar mais tempo disponível para os utentes, oferecer novas valências, como saúde oral e visual ou psicologia, análises clinicas ou radiologia básica, fisioterapia, etc. E, ainda, disponibilizar consultas domiciliárias para doentes mais idosos ou fragilizados (o que, diga-se, algumas autarquias já fazem por sua conta e risco). Ora, este tipo de responsabilidades está-lhes completamente vedado, porque a gestão dos recursos humanos de prestação direta não é descentralizada, bem assim como a gestão de equipamentos médicos, novas formas de trabalho, horários ou novas valências.
Neste contexto, em que apenas matérias de natureza logística (limpeza, manutenção de elevadores, jardinagem, apoio e vigilância, viaturas, conservação de edifícios e/ou pagamentos de rendas, água, eletricidade, aquecimento e ventilação) são objeto de transferência para o poder local, a par dos funcionários com a categoria de assistente operacional existentes, parece evidente que as novas competências têm pouco a ver com a missão e o valor criado para os utentes. Mas é curioso verificar que o legislador, de uma forma talvez pouco cuidada, obriga as autarquias a gerir as infraestruturas garantindo “níveis de prestação dos serviços objeto de transferência”, não se apercebendo que a forma como aquelas são utilizadas são alheias às suas competências. Em síntese, transfere-se o acessório e mantém-se centralizado o essencial.
A comunicação social tem-se feito eco das preocupações da ANMP quanto aos encargos financeiros cuja responsabilidade é transferida para as autarquias, como se fosse a questão mais importante. Não parece ser, pese embora também neste capítulo as transferências previstas sejam de elevado risco para as autarquias. O edificado em centros de saúde não está previamente avaliado e o estado de conservação só é financeiramente relevante quando os edifícios estejam extremamente degradados. Quanto aos assistentes operacionais, apenas serão transferidas verbas respeitantes aos postos de trabalho preenchidos no quadro, ficando sem esclarecimento o que se passará com contratados a prazo ou com as vagas que possam vir a ser preenchidas (a ANMP propôs que o financiamento a transferir respeitasse o número de vagas e não apenas os efetivos em exercício). Por outro lado, a atualização dos valores a transferir terá apenas como referência a taxa geral de inflação de cada ano, na saúde geralmente superior, e não o envelhecimento, o aumento de utentes ou a modernização/ampliação de instalações.
Em jeito de conclusão, parece que a administração central apenas está disposta a prescindir dos investimentos em infraestruturas e atividades claramente secundárias, não abdicando de toda a área de prestação de cuidados, a que, afinal, mais interessaria às autarquias. Importa dizer que a transcendência deste processo de descentralização radicaria justamente, na possibilidade real de vermos os autarcas a criar formas mais imaginativas e funcionais de satisfazer os seus munícipes na área dos cuidados primários, demonstrando que a desconstrução de um modelo único e profundamente burocrático, ainda por cima gerido à distância, traria benefícios para as pessoas, menos listas de espera, menos utentes sem médico de família, melhor distribuição dos médicos pelo território nacional e, tudo isto, com menos custos e mais accountability. Infelizmente, nada disto será possível. É o Estado Central no seu melhor!
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