O segmento evangélico americano confunde a afirmação da fé no espaço público com uma intervenção política associada à tentativa de imposição da sua ética religiosa particular, pela via legal e governamental. De facto, cada grupo religioso tem direito a viver de acordo com os princípios éticos da sua confissão, desde que não fira as leis do país nem os direitos humanos. Mas já não tem o direito de querer impor uma ética particular a toda a sociedade, seja esse grupo religioso maioritário ou não. De resto, o estado democrático de direito é laico justamente para conferir liberdade a todas as confissões religiosas, sem imposições ou censuras nem favorecimentos.
Longos séculos antes da Revolução Francesa já Jesus Cristo tinha deixado muito clara a separação entre dois mundos: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Lucas 20:25). A partir da ideia da legitimidade de pagar impostos a Roma, estabeleceu-se assim que o cristão tem duas obediências, a secular (integração numa sociedade alargada) e a espiritual (integração num território espiritual denominado “reino de Deus”), devendo obediência a ambos.
Confusão entre evangelicalismo e nacionalismo. A religião americana é civil, é a religião dos stars and stripes. Fazendo o revisionismo da história do país, como se só os cristãos brancos pudessem ser considerados bons americanos e como se os founding fathers tivessem sido todos cristãos.
Mais uma vez, basta olhar para o Jesus Cristo apresentado no Novo Testamento para ter a certeza de que nunca foi um nacionalista e muito menos xenófobo, misógino ou racista. Pelo contrário, atendeu militares romanos, samaritanos, fenícios, gentios e judeus, homens, mulheres e crianças, leprosos, doentes e perturbados. Momentos antes da morte até prestou atenção e concedeu graça a um criminoso crucificado a seu lado. Ou seja, para ele não existiam barreiras culturais, raciais, etárias ou de género.
Nem sequer respeitou barreiras religiosas ao curar enfermos durante o dia de sábado, pelo que foi furiosamente criticado pelos judeus. Até se deixou tocar pela mulher hemorrágica, cerimonialmente impura face à lei de Moisés devido à sua condição clínica, e que ao tocar-lhe o tornaria na mesma condição.
Ao acolher tanto judeus como estrangeiros o mestre de Nazaré revelou-se a antítese do nacionalista, e no final deixou orientação aos seus discípulos para irem a todas as nações levar um evangelho universal, que era exactamente o mesmo para judeus e gentios.
Confusão conceptual sobre a violência. O ataque e assalto ao Capitólio há um ano, na tentativa de impedir que o novo presidente eleito tomasse posse, foi de uma violência extrema contra a democracia tal como a conhecemos nos Estados Unidos. O envolvimento de alguns sectores cristãos comprova claramente não apenas que a democracia no país está a ficar muito doente, mas o mesmo sucede também com boa parte da igreja. Como diz Russel Moore na revista “Christianity Today”, a propósito da intenção declarada por alguns atacantes de enforcar o vice-presidente a fim de não poder certificar a vitória do candidato oponente e do cartaz que dizia “Jesus salva”: “O facto de ambas as imagens coexistirem na mesma multidão é sinal de crise para o evangelicalismo americano.”
O facto é que líderes religiosos evangélicos acusaram então falsamente os activistas da Antifa pelo ataque, querendo inocentar a multidão de apoiantes de Trump presentes no comício a quem ele incitou à rebelião. Além disso todas as pesquisas demonstram que a maioria dos evangélicos brancos continua a pensar que a eleição de 2020 foi roubada por uma conspiração de esquerda, incluindo governadores republicanos e funcionários eleitorais. “Assim, vemos a dissonância cognitiva de pessoas que apoiam a lei e a ordem (às vezes citando Romanos 13), mas batem em polícias e quebram janelas para impedir o dever constitucional do Congresso em contar os votos da eleição. Essas são as mesmas pessoas que podem ridicularizar as próprias palavras de Jesus Cristo sobre dar a outra face como algo ingénuo e débil.”
Desde quando se anuncia uma mensagem de paz com espancamentos e assassínios? Como se alcança o bem fazendo o mal? Como se defende a verdade a mentir? O ataque ao Capitólio terá sido um equívoco ou um treino para futuras tentativas de golpe e violência de massas, como preconiza o jornal “The Atlantic”?
Antes já tínhamos uma cultura pós-cristã no mundo, mas desde há um ano que temos indícios duma igreja pós-cristã na América.
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